...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O dia em que neva


A neve em uma cidade agitada como Berlin é vista por muita gente como um incômodo. Fica difícil andar na rua, atravessar a rua, reconhecer onde começa a rua. O trem atrasa, o carro derrapa, a gente escorrega. Depois de tanto vai e vem, o dia inteiro, a neve vai deixando de ser branca, e vai ficando parecida com uma lama, uma lama gelada.

Falando assim, até pareço um alemão. Alemão tem fama de reclamar de tudo. Nunca vi um Alemão dizer que está ótimo. Quando muito, está tudo bem. Mas, pasme você, apesar de toda esta confusão, até os Alemães se rendem ao encanto do dia em que neva.

O dia em que neva é aquele dia em que a gente acorda, olha lá fora, e vê tudo branco, intocado. A neve ainda não causou nenhuma confusão, ela apenas caiu, enquanto a gente dormia. Diferentemente dos dias que se seguem, o dia em que neva é um dos mais calmos. Ele é silencioso, porque a neve que cobre tudo - as calçadas, as ruas, os telhados e os carros - abafa o som da cidade. Tudo fica mais quieto. As pessoas andam mais devagar, com medo de cair, tentando tatear com os pés onde é mais seguro pisar. Ninguém teve ainda tempo de limpar as calçadas. E se a neve ainda estiver caindo, aí sim a sensação de paz é completa. Isso porque, diferentemente da chuva, a neve é lenta, e cada floquinho vai descendo de vagar, dançando de um lado para outro, até pousar lentamente sobre o floquinho que caiu segundos atrás. Observando da janela, até o nosso ritmo parece que fica mais lento.

Não bastasse tudo isso, tem ainda o floco de neve em si. O menor pedacinho visível da neve tem um formato perfeitamente geométrico, como uma mini toalha de crochê, branquinha, daquelas que a minha avó Maria faz. Tamanha perfeição se desfaz em segundos, ao cair na nossa mão, e vira uma gota de água como outra qualquer.

É uma pena, mas esse dia uma hora acaba, e logo em seguida vêm os dias de caos (ou “Katrastrophe”, como falam aqui). A calma da neve branquinha dá lugar à bagunça geral que descrevi lá no começo. Ainda assim, penso que vale à pena. Afinal, que graça teria passar tanto frio se não pudéssemos ver a paisagem mudar, as crianças felizes da vida com o brinquedo novo que caiu do céu, e, acima de tudo, ter o privilégio de experimentar a sensação do dia em que neva?

Penso que é como aquelas decisões que a gente toma, cientes das consequências, nem sempre fáceis de administrar. Sabemos que virão - e de fato vêm - as dificuldades, o desconforto, e a necessidade de se equilibrar, aqui e ali, para não escorregar. Mas ainda assim topamos pagar para ver, viver o que existe para ser vivido, e aproveitar, cada um desses dias “em que neva”, seja no inverno, seja no verão.