...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

sexta-feira, 22 de maio de 2020


Dois anos de vendaval

 Hoje notei que faz um ano que não escrevo um texto aqui. Eis a razão.

Imagine um vento que vem assim do lado, pelo cantinho da janela, na forma de uma brisa quente e gostosa. Quando a gente se dá conta, a brisa virou um vendaval daqueles que balança tudo, derruba quadro da parede, retrato da estante, faz a porta bater e te deixa tonto sem saber direito de onde está vindo e para onde vai. Ganhei um presente assim, na forma de vento, ha exatos dois anos, data que comemoramos hoje com tanta alegria aqui em casa.

Agatha, você  é o ar que refresca o meu peito, varre velhos conceitos dos cantos do meu coracao e  sacode as nossas vidas todos os dias, num misto de doçura, fibra e esperteza que me desafia e consterna. Com você me dei conta do estágio ainda incipiente em que me encontro, na escala de evolução como ser humano. Ainda preciso crescer muito para conseguir te entender e ser a mãe que você precisa. Você não se cansa. Desde que aprendeu a ficar em pé sobre as suas perninhas gordas, você já escalou algumas pias de banheiro, a mesa de jantar par abalançar o lustre de garrafas, a mesa da cozinha para dançar em cima do tampo, a escrivaninha da sua irmã par apegar canetinhas na estante e o piano para tocar com os seus pezinhos.

Você lembra de coisas que falamos faz tempo, de pessoas que encontramos há meses, de músicas que cantamos so uma vez. Faz uma pergunta bem esdrúxula e depois responde “ah tá”, satisfazendo-se imediatamente, quando a gente tenta responder. Acorda perguntando se já está “todo dia” e pergunta se "já está de noite" assim que o começa a cair a tarde. Você me dá, inesperadamente,  abraços tão apertados que enchem o meu peito de uma alegria que eu não sabia existir, para depois arremessar meu óculos longe com raiva na hora da birra. Minutos depois, quando me vê sorrindo por algum motivo, pergunta se eu já estou feliz, querendo saber se já esqueci do ocorrido. Puxa o pelo do cachorro, sai correndo com o braço para cima levando o ossinho dele para longe, depois poe a sua cabecinha junto com a dele e diz “te amo Tobias”.  Voce sabe quando fala coisas engraçadas. Ri com os olhos, esperando para ver o que a gente entendeu. Pula batendo palminhas quando eu falo que vai ter bolo de chocolate, como hoje, e na hora que ganha o seu pedaço, só quer catar o granulado, um por um com os dedinhos, por horas a fio se eu deixar. Voce vira bicho quando eu tiro o celular que o seu pai deu na sua mão, para você ver desenho e deixar ele trabalhar em paz. Voce gosta de passar o meu batom, não apenas na boca ou no rosto, mas especialmente nos braços, de maneira metódica que não se acha um pontinho com cor de Agatha neles. Só cor de curupira. Voce sonha muito de noite, grita e briga dormindo, acordando todo mundo de madrugada. Voce adora cosquinha, e ri tanto que solta pum e pergunta olhando de lado, com o dedinho apontando para o ouvido: “Tutou?”.

Quando você me deixa maluca – quase todo dia, em especial nesta quarentena que estamos vivendo -, basta lembrar do quanto eu quis que você viesse logo para casa há dois anos. Trazer você para perto de nós e poder te proteger foi uma das maiores alegrias e alívios que já experimentei. Tudo isso já seria maravilhoso, mesmo com toda a turbulência do seu ventinho, mas ainda tem mais. Você fez da Giovanna uma grande irmã. Ela briga com você o dia inteiro na nossa frente. Quer o mesmo copo. O mesmo número de bolachas. Sentar no mesmo lugar. Fala que você é chata e só chora.  Que você baba nos brinquedos dela, e os arranca imediatamente da sua mão. Mas quando não estamos olhando, e preciso confessar que já espionei e constatei com meus olhos algumas vezes, ela te protege como uma leoazinha. Te ensina o que ela sabe, fala mansinho,  te faz carinho, canta para você, e sorri com aqueles dentões enormes dela que a gente ama tanto ver expostos por aí.  

Pode continuar ventando, minha bebezinha. Você soprou e fortaleceu a brasa do meu desejo de ser mãe, e tem me dado a chance preciosa de ver um novo ciclo de vida se desenrolando diante dos meus olhos: o seu. Me dá uns minutinhos para respirar de vez em quando, se puder, mas segue soprando o seu ar de vida intensa sobre nós!

quarta-feira, 22 de maio de 2019


Um ano a quatro

Tatinha, hoje é um dia muito especial. Há exatamente um ano, respirei aliviada quando finalmente entramos pela porta da sala carregando o seu bebê conforto e colocamos ele cuidadosamente no chão. Pronto. Meus ombros, tensos há dias, desceram amolecidos.  Você estava em casa e era nossa para sempre. Posso contar este tempo tradicionalmente em meses, semanas e dias, ou nas vezes (muitas) em que meu coração ficou mais leve, cada vez que você abriu o seu sorriso delicioso. Sorriso que foi ganhando cada vez mais destes seus mini Mentex branquinhos, que hoje compõe o seu sorriso de criança, não mais aquele sorriso banguelinha de bebê.

Seu rostinho era redondo como uma lua, e sua cabeça ficava quase toda a mostra, com uns cabelinhos claros e ainda ralinhos e bagunçados. Agora eles já se aventuram em cachinhos, mais cheinhos e encorpados, sempre cheirosos, mas que ainda teimam em fazer bagunça para combinar com você.

Vimos você aprender a segurar a colher, jogar as coisas brava no chão, engatinhar, andar e agora correr e escalar. Vimos você despertar na Gigi o verdadeiro amor de  irmã. Aquele que oscila entre o amor (nos muitos momentos de carinho e chamego) e o ódio (sempre que você baba na boneca ou na borracha dela), mas que faz ela te defender de tudo e exibir você por aí como um troféu. E você aprendeu rapidinho a acompanhar essa sua irmã tão especial por onde ela vai, a rir com vontade de tudo o que ela faz, e imitar tudo o que já consegue, escolhendo assim desde logo os lugares mais altos e perigosos da casa para as suas escaladas.

O tempo que passo longe de você e da sua irmã hoje em dia tem dois efeitos opostos. Por um lado, descansa meu corpo e ouvidos (o som de vocês é ininterrupto, a correria é constante e a bagunça perene,  o que por sua vez também faz com que eu mesma dê vários gritos dos quais me arrependo sempre). Mas ao mesmo tempo, o tempo longe de vocês cansa a minha alma, que se desconecta em parte de mim, e só resolve voltar quando nos encontramos. Ela fica amuada, entediada, e vê pouco sentido no que ando fazendo por aí. É como se fizesse birra, igual a certas pessoas... Se joga no chão, bate os bracinhos no ar e faz um bico enorme. Acho que ela se dá conta que enquanto vocês estão em casa crescendo diversos milímetros por  hora (pelo menos essa é a impressão que dá!), eu corro de lá para cá ocupada com tarefas e reuniões que no final se mostram muito menos importantes do que o seu convite, Tatá - com a mãozinha minúscula batendo no assento do sofá -  para eu sentar do seu lado e ver você riscar o papel. Aliás, como é que pode já segurar o lápis tão direitinho?

Este foi o primeiro ano de uma família que agora está completa, com a sua chegada. Você, Tatá, é para mim o símbolo da esperança (considerando não apenas o tanto que foi esperada, mas que a beleza e a vida podem surgir de onde nunca se espera... e de onde não mais se espera).  Todos os dias, quando te coloco no berço, repito que a mamãe te ama, o papai te ama, a Gigi te ama e o Tobias quase sempre te ama (talvez ele também amasse o tempo todo se você não roubasse o osso dele para por na sua boca). Repito isso aqui, Tatá, agora por escrito, para que nos muitos anos que virão, assim permita Deus, você nunca se esqueça de todo esse amor que  foi capaz de criar.  
 
 

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Tatatá




Agatha, não tem como eu deixar o dia de hoje acabar sem pendurar nesta tela em branco do computador as palavras que andam rodando na minha cabeça há algumas semanas, soltas, querendo ser registradas para o dia em que você puder entender. Foram sete meses de convívio absolutamente intenso com você. Muitas vezes cercadas pela nossa família, que te ama tão loucamente quanto eu, mas também tantas vezes só nós duas. Aqui na nossa casa, na rotininha que o seu status de bebê requer, entre banhos, mamadeiras e passeios no sol, nesta pausa maravilhosa que a vida me concedeu para te conhecer e receber os presentes que você me trouxe, não sem bem de onde, com a calma e o tempo que eles merecem.


Lembrar como é sentir o amor puro de verdade, com total intensidade e sem receio de entrega, foi o milagre que você fez em mim. Atendi ao convite dos seus olhos enormes, para um contato intenso e profundo, que diariamente foi me trazendo de volta, me resgatando e resgatando minha esperança de me encantar novamente com o mundo, uma parte da inocência que eu tinha largado por aí nas curvas pelas quais a vida às vezes nos leva.   

Vi seu sorriso imenso e gostoso, aquele mesmo que você nos ofereceu de graça logo no primeiro dia em que nos conhecemos, ainda banguela, ir ganhando o recheio de dentinhos, desde o primeiro até o nono, que despontou aí outro dia, não te deixando dormir à noite de febre e incômodo. Vi você começar a engatinhar como uma lagartinha em cima da cama, depois rápida com os joelhos coordenados no chão, e logo estava se apoiando para ver de pé o que tinha em cima do banco. Torcemos pelo seu primeiro passinho com mãos dadas, depois sozinha, e agora te vejo passar correndo de lá para cá no corredor, ainda meio cambaleante, mas determinada, enquanto guardo na cozinha tudo o que você tirou das gavetas enquanto eu cozinhava.

Vi você fazer caretinha com a boca toda suja de feijão preto, fazer bagunça na banheira, puxar, impune, tufos de pêlos do cachorro. Aprender a gostar de dormir no seu berço, que no início parecia ter espinhos, e onde agora você deita tranquila, enfiando a cabecinha nas almofadas, depois de balançar o bumbum e abraçar o seu coelho Godofredo. Vi você se arriscar nas suas primeiras pseudo-palavras, que por enquanto se resumem a três: “papapo” (termo multi-propósito que serve tanto para “sapato”, “sapo” quanto para “macaco”), “pu-pu” (vulgo “piu-piu”, mas que além de aves abarca tudo o que vôa, incluindo borboletas, mosquitos e pipas), e “não” (este último termo de uso intensivo, dispensando explicações).  Vi você conquistar a sua irmã logo no primeiro olhar, irritá-la com a sua baba nos brinquedos e seu choro nervoso, e logo depois voltar a fazê-la te amar com o seu abraço aconchegante, sempre acompanhado de uns tapinhas nas costas, das suas mãos gorduchas.

Virei nestes tempos uma pessoa ainda mais aficionada por fotografar, filmar e gravar tudo o que você e a sua irmã fazem, falam, vestem. É uma chatice mesmo, uma fixação paranoica. Parece que se eu não fotografar, o momento não aconteceu. Certamente um desvio grave, vindo do meu subconsciente que quer vencer o decurso do tempo, aprisionando estes momentos simples para sempre, ainda que seja na memória do celular, no hardware do laptop, na página do photo-book que eu insisto em mandar imprimir. Desse jeito, a minha licença maternidade não acaba. Vocês não crescem. Sua risadinha continua assim inocente e abundante para sempre. E seus olhos continuam querendo para sempre buscar a minha alma, lá dentro de mim.



Amanhã não vai ter jeito, Ágatha. Vou voltar para o trabalho para valer, e te ver pouquinhas horas do dia, ao invés de o dia todo, como eu e você estamos acostumadas. Já te expliquei lá no seu bercinho, agora há pouco, e você, de novo me deu um presente, ao ouvir tudo me olhando e no fim dizer “tá”. Claro que pode ter sido uma sílaba solta dessas que você cantarola comigo no banheiro sem parar. Qualquer um diria isto. Mas eu creio que foi você me confortando e me lembrando que TÁ tudo bem. TÁ tudo ótimo. Você TÁ aqui. Você é a TATATÁ (AgaTHÁ), como brincamos e você repete. E TÁ mesmo, TATATÁ. Entre os presentes que você me trouxe, está o desejo antigo, agora amadurecido e transformado em objetivo, determinação, de encontrar um caminho onde eu possa andar mais pertinho de você e da sua irmã, e também mais perto de mim mesma. Vamos conseguir, TATATÁ. Pode dormir tranquila.


quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O tímpano e o tempo

Foi de uma hora para outra mesmo. Assim como quem relata um mal súbito, uma vista ofuscada, ou uma pontada fatal no peito. Num minuto ouvia tudo perfeitamente: todos os barulhos daquela casa, altos e encavalados, como todo dia. No minuto seguinte, começou a ouvir o latido do cachorro estranhamente distante. Como se ele estivesse a muitos e muitos metros de distância, e não ali no quarto ao lado, brincando de puxar a pelúcia da mão da Carolina. 
Carolina, que apesar de ter só seis anos de assunto, falava mais que torneira aberta, uma palavra emendada na outra, sempre em volume além do necessário e às vezes sem parar para respirar, até lhe dar um engasgo. A irmã chorava aquele choro estridente de nenê com fome namadrugada, mas também de dia, fosse porque queria segurar a colher na hora de comer, ou porque caiu achupeta, qualquer coisa assim. E em cima da voz de uma e do choro irritante da outra, tinha também o latido do ChicoDe uns tempos para cá tinha dado para enfiar o focinho em baixo da fresta da porta ao menor movimento do elevador e latir que nem vira-lata de periferia no quintal. 
O que deu nesse bicho agora?  Já não basta essa gritaria em casa? dizia Maurílio, algumas vezes a ponto de pegar a chave do carro e fugir do caos sonoro em que tinha se tornado aquela casa
Quando eram só ele e Tereza, tomavam café expresso em silêncio de manhã, liam o jornal, e tinham o costume de ouvir jazz bem baixinho enquanto tomavam um vinho à tardinha, ao chegarem do trabalho. Dava para bater papo com tranquilidade, sem qualquer interrupção, e até ouvir um passarinho ali da árvore do jardim do prédio, já que a copa dava quase na janela do quarto. Que saudades tinha do tempo em que não precisavam de babá ou empregada:
– Por que a Marlene precisa falar tão alto, meu Deus? – reclamava para Tereza, que a tinha contratado. 
Antes das crianças, tudo se arranjava com mais facilidadeem casa. Não havia obrigação de almoço ou jantar. Uma torradaum patêestava tudo certo. A roupa era tão pouca que se podia levar na lavanderia às sextas-feiras. Agora, eram quilos de roupas na máquina e panela de pressão chiando alto logo cedo. 
As meninas precisam comer direito – dizia Tereza. 
A Tereza mesmo, que cantava bossa-nova baixinho ao violão nas noites tranquilas de alguns anos atrás, agora gritava como é de direito das mães gritar. Não por opção, mas por necessidade. É uma que não quer calçar o tênis, a outra que não para quieta para trocar a fralda, o mijo do cachorro fora do lugar e a porcaria da campainha que já tocou três vezes e ninguém que tem coragem de atender, que é tudo ela que tem que fazer sozinha nesta casa mesmo. 
E Maurílio foi perdendo a vontade de voltar para casa, que jazz não ia ter, e ele sabia. No começo perguntava se não faltava nada na dispensa, que ele podia parar um instante na padaria ou no mercado e assim se demorar mais um pouco na rua. Depois, quando até no telefone tinha ficado difícil conversar por causa do barulho das crianças, mandava uma mensagem avisando que precisava trabalhar até mais tarde. E mesmo que não tivesse trabalho, arranjava um assunto para tratar com um amigo, que melhor seria falado com uma cervejinha. E assim ia se livrando daqueles decibéis insuportáveis, tratando de dar um jeito de chegar em casa quando as crianças já dormiam, a empregada já estava no ônibus de volta para casa, falando alto com outra pessoa. Quem não mais gritava, nem mesmo falavaa essa hora, era Tereza. Não porque não tivesse assunto, que muita coisa tinha acontecido em casa durante o dia, mas porque já lhe faltava energia e às vezes mesmo vontade, já que sabia queMaurílio não tinha tanto trabalho assim na loja
Já no final de semana, não tinha para onde fugir. A barulheira estava lá desde cedo, até a noite. Não se podia mais dormir até mais tarde, que logo às seis alguém chorava, a TV era ligada bem alta no canal de desenhos, e o cachorro queria brincar. Depois do almoço eram as crianças vizinhas correndo em casa, ou um buffet infantil com barulho ensurdecedor de música ruim que não deixa ninguém conversar
Mas tudo isso, incluindo a falação da Carolina pedindo mais biscoito, o choro agudo da nenê apontando para a chupeta no chão, o latido esquizofrênico do Chico, a briga da Marlene no interfone com o porteiro, o chiado do feijãoe a Tereza pedindo socorro... tudo isso agora tinha ficadodistante, num volume estranhamente baixo, quase inaudívelque trazia consigo, ainda, um eco nostálgico de passado, uma coisa de dar medo, como um som seco num grande salão vazioEco de filme que tem cenas de passadosabe, de um tempo que já não volta mais.
- Meu Deus,  ficando surdo. Corre aqui, Tereza, me traz um cotonete urgente
Mas não houve cotonete, antibiótico auricular, otorrino ou aparelho auditivo que resolvesse.  Tudo dali para a frente,passou a ser um som baixo e distante do passado, com aquele eco de lonjura e nostalgia. Olhos no presente e ouvidos eternamente no futuro. Um tipo de benção-maldição que lhe lembrava diariamente que o tempo passa, crianças crescem, cachorros morrem, e as mulheres eventualmente se cansam. Só agora conseguia escutar de verdade a risadinha histérica da Carol, as primeiras palavras da nenê, e a voz suave de Tereza dizendo que lhe amava. Mas tudo isso foi há muito tempo atrás.




Brilho humilde


Que gentileza sem tamanho, a desse luar. Se condói todo com as luzes aqui de baixo. Especialmente com essas ridiculazinhas, as de natal, que andam por aí esses dias. Ou melhor, que piscam por aí essas noites. Medidas em watts, coitadas, dependentes de fios e da vontade humana, vivem vidas curtinhas, sem graça e de pouco sentido. Ninguém por elas suspira ou uiva. Nem sequer um verso a seu respeito. Logo queimam ou quebram. Saem de moda. Enfiadas num depósito, ficam apagadas até ano que vem ou descartadas, para nunca mais. 

De tão esclarecida e iluminada, há tanto tempo ali observando o mundo de longe e ouvindo elogios a seu respeito, tem a grandeza de disfarçar o seu brilho, seja quarto crescente, ou cheio. Só tem sossego mesmo quando mingua até sumir. Aí pode relaxar despreocupada, sem risco de magoar ninguém.

Mesmo emprestada, já que própria não é, a luz da lua não se presta a comparação com a miséria dos bulbinhos e leds aqui de baixo, por  numerosos e modernos que sejam. Se esconde então ela, elegante e discreta, aqui e ali entre as nuvens que o vento empresta, como a mulher que puxa tímida a toalha para se cobrir quando sai do banho  e percebe que tem visita em casa. Afinal, quem é dona de poder de sedução dessa monta, não precisa ficar por aí se mostrando à toa, exibindo brilho e humilhando lampadinhas, faiscas e vagalumes a troco de nada. Ela deixa para brilhar sozinha, com força e vontade, em outros cantos. Em alto mar, no sítio ou no mato, onde essas pobres luzinhas  não estão, ou se estão quase não se vê. 

Mas às vezes, mesmo com toda a sua clareza de discernimento, não enxerga saída.  Tem que contrariar a sua alma generosa e brilhar como um grito,  escandaloso e despudorado, mesmo aqui na cidade, na presença de milhões de luzinhas infelizes que a observam com dor e inveja. Não porque tenha perdido a bondade, o juizo ou a compostura. Mas porque às vezes simplesmente não se encontra toalha suficiente que lhe cubra.


terça-feira, 16 de outubro de 2018

Sobre o Tobias



O Tobias veio para acalentar um coração infantil aflito que, de tanto desejo de ter um animalzinho, acolheu duas minhocas no jardim e as batizou (Juliane e Mariane eram os nomes). A efêmera vida e trágica morte dos anelídeos em seu pequeno copinho plástico teve o heroico feito de nos convencer a ir em busca do companheirinho que a Giovanna tanto pedia. Um cachorro.

Já li em algum lugar que um cachorro nada mais é do que amor embrulhado em pelos. No caso do Tobias, muitos, branquíssimos e longuíssimos, quase sempre bagunçados, descabelados, e inevitavelmente embolados, dando a ele o ar de cão selvagem que na verdade é. Isso porque além do amor que ele de fato traz de sobra em seu interior, tem uma dose enorme de malandragem lá dentro, um tipo de combustível atômico que faz o bicho saltar que nem coelho e correr como se fosse um labrador, com aquelas orelhas cabeludas balançando sem parar e deitadas para trás para melhor aerodinâmica. Corre não apenas atrás de bolinhas e discos, mas também de pombas, borboletas e afins. O Tobias não perdoa. Se mexeu ele persegue. Não pega nada, mas se diverte. Só ele para acabar com a a atmosfera zen do laguinho de carpas aqui do Condomínio, avançando nelas da borda que nem um doido, abanando seu penacho branco com a mais plena alegria. Por duas vezes já precisei puxá-lo pela coleira lá de dentro, ao ver aquele algodão gigante, boiando na água gelada.

Tem também as outras artes de cachorro normal: sobe na mesa e come o nosso jantar quando ninguém está vendo, rouba pé de meia ou de sapato quando a gente está atrasado, late ferozmente para o seu reflexo no vidro da sacada, esconde o caroço melado de manga no sofá branco da sala, bebe água do chuveiro. Já vomitou no carro e acertou dentro da minha bolsa que repousava aberta no chão. Já avançou em Pitbull (o doido!). Já entendeu sozinho que a nossa bebê é café com leite e com ela ele só brinca de levinho.

O Tobias é responsável por grande parte do barulho, mas também da leveza da nossa casa. Ver ele esfregando freneticamente as costinhas justamente onde espirrei o spray para  espantar cachorro é um episódio que gera tanta indignação quanto riso.  Brinca de pega-pega e esconde-esconde pra valer com a Giovanna, traz os brinquedos para a gente tentar puxar da boca dele (e não larga nunca), faz festa dobrada quando escuta a voz da vovó chegando.

O Tobias está sempre perto. Não importa o que você esteja fazendo ou a hora. Companheiro até da madrugada, sem se importar com o enervante choro de bebê que às vezes nem o nosso ouvido humano aguenta. Lá está ele aos pés, na cadeira de balanço, por horas a fio, até todo mundo poder voltar a dormir. E quando a gente esquece a carteira em casa e volta correndo para pegar, lá está ele ainda de olhar fixo e sempre esperançoso na porta, pronto para fazer a mesma festa que faria se estivéssemos voltando de uma viagem de um mês. O Tobias me fez falar fininho, amorosamente e me referindo a mim mesma como mamãe dele. Nunca imaginei isso.

O Tobias já tinha nome antes mesmo de existir. Era o nome idealizado de um cachorro, se um dia o tivesse.  já houve até Tobias Agora aqui está o Tobias em carne, osso e muitos pêlos, com todo o seu amor e malandragem, dormindo à noite em cima dos pés da Giovanna, que tanto o desejou. E por tabela fazendo de cada um de nós uma pessoa um pouquinho mais tolerante, amorosa e talvez mais leve. Agora são quase quatro horas, está para chegar o rapaz do adestramento, que chamei para me ajudar com esse negócio de um Maltês achar que pode atacar Pitbull. Ah, Tobias...


terça-feira, 18 de setembro de 2018

Eu, o Lucas e as nossas dores



Se a espera pela Giovanna, nossa primeira filha, foi uma gravidez de desconforto  infindável (pela longa demora de  quase 5 anos na fila da adocão), foi o momento da chegada da Agatha – e não a espera por ela - uma das dores mais agudas que já senti. Um parto de contrações ininterruptas que durou mais de uma semana.

Conhecer sua pequena filha, tão esperada, e não poder trazê-la para casa imediatamente, é uma prova de nervos. É parecido com o drama das mães que deixam bebes na UTI do hostpital, quando nascem prematuros. Voltam para um quarto de bebê vazio, ainda sem  ocheiro ou o barulho que todo quarto de bebê merece ter.

Passar o dia todo trocando calor e olhares com aquele nosso pequeno sonho que se concretizou, e à tardinha dizer tchau. Colocar a criança que já amei nos primeiros instantes, de volta nos braços de alguém que faz o melhor que pode, com poucos recursos e tendo mais dezenas de crianças e adolescentes para cuidar.

Como doía o meu coração cada vez que eu estendia os braços neste movimento ingrato, de entregar minha filha para vê-la novamente só no dia seguinte, no horário permitido de visita. Algumas vezes a entrega teve que ser a uma ou outra adolescente, também abrigada no local, pela falta de braços da equipe de cuidadores no momento da troca de  turno. Eu me oferecia para ficar pelo menos mais um pouco, niná-la e coloca-la no berço eu mesma. Mas não era possível acomodar a rotina que eu idealizava para a minha bebê, em meio a criançada maior que precisava ainda jantar, tomar banho e os adolescentes que tinham seu momento de conversar alto, assistir TV e ouvir musica (funk) em volume perturbador, no porão escuro e de chão frio, onde ficavam todos juntos até mais tarde, na hora de subir para os quartos e dormir.

Ia embora com o coração oscilando entre a tristeza profunda da impotência, e a alegria aguda por saber que aquele desejo já tinha nome e rosto, só não estava em casa ainda.

Durante as noites, que acredito tenham sido as mais frias do inverno deste ano, não parava de ouvir na minha cabeça aquele chiado pertubador do peito dela, que por óbvio precisava de um tratamento mais efetivo do que a inalação apenas com soro que vinham fazendo, ainda que diligentemente por lá.  E a aflição so aumentava quando a Giovanna me perguntava inconformada, com uma expressão inquisitória:

_ Mae, como você pode deixar a minha irmã lá?

Foi mesmo um parto dolorido. Mas tendo a crer que havia um motivo para esta demora. A dor do outro, personificada no Lucas.

Aquele menino especial de 16 anos, que esteve ali desde bebê, abandonado por conta da sua deficiência. Durante todas as minhas longas visitas à Agatha nesta semana, o olhar perdido dele se fixava por alguns instantes nela, e ele vinha, com seu andar cambaleante e seu descontrole motor, beijar a bebê que amava. Quantas Agathas, bebês saudáveis, bonitos e perfeitos, ele viu chegar ali, e sair nos braços amorosos de pais que ele não teve e nunca terá. E minha dor incluía, devo confessar com vergonha, o sentimento de receio pela integridade física da Agatha, que este rapaz insistia em pegar no colo, apesar de não ter condições motoras para isto.

Na noite de quarta-feira em que finalmente foi emitido o termo de guarda pelo fórum, fomos eufóricos, em família, buscar a nossa bebê lá. Ao tocar a campanhia, pela primeira vez eu notei que da rua era possível ver uma janela, a janela do quarto dos meninos grandes. A luz estava apagada, mas pude reconhecer perfeitamente a silhueta do Lucas, que olhava fixamente na direção do portão, onde estávamos. Imóvel, sem os movimentos oscilantes e involuntários que costumava fazer. Ele acenou para mim. Parecia mesmo saber que era a última visita, e que não veria mais esta sua bebê. Ao menos não até a chegada da próxima na casa.

A minha grande dor havia finalmente terminado naquela noite. Mas a do Lucas não.