Bastou a neve aqui dar uma derretida, e já se pode ouvir, de volta, o canto dos passarinhos. Isso outro dia me fez pensar na vida do passarinho. Ele tem basicamente duas necessidades, pelo menos até onde eu sei. Comer e fazer outros passarinhos. A primeira já é uma tarefa e tanto, pelo menos num frio como esse. Coitado. Não sei que tipo de minhoca sobrevive nesse chão gelado. E nas árvores, já não tem folha alguma há muito tempo, quanto mais frutinhas pra se beliscar. Então a simples tarefa de arranjar o que comer já deve ser, por si só, um desafio. Quanto a fazer outros passarinhos, não sei detalhes sobre a reprodução das aves, mas imagino que os instintos devem tomar conta da maior parte. Depois, a tarefa se resume, novamente, a encontrar o que comer, agora para si próprio e para a cria. De qualquer forma, sei que escrevo aqui correndo o risco de subestimar a complexidade da vida do passarinho, cometendo uma enorme injustiça. Mas ainda assim, vou arriscar.
Imagine como seria viver tendo apenas um ou dois objetivos bem definidos a cumprir, todos os dias. Não as múltiplas e complexas tarefas e preocupações que a gente tem, ou acaba dando um jeito de arrumar. Conte, nem que seja bem por cima, o número de assuntos com os quais você lida todos os dias. A começar pelos seus dois ou três principais pepinos no trabalho, passando pelas coisas pequenas do dia-a-dia como aquela consulta que você esqueceu de marcar, o sabão em pó que acabou, o telefonema que não deu tempo de retornar, os horários aos quais nos obrigamos e, ainda, pelas coisas que ocupam as nossas mentes enquanto tentamos fazer tudo isso: medos, inseguranças, saudades, frustrações, ansiedades, incertezas...
É coisa pra chuchu. Sorte do passarinho, sentado lá fora. É verdade que o galho que ele escolheu está balançando um bocado, e deve estar um frio daqueles. Mas acredito que ele também não sente muita coisa, além de frio e fome. Já gente... Gente tem tantos sentimentos, que às vezes faltam palavras para descrevê-los. Eu mesma tenho alguns que nunca vi definidos, tais como deveriam, no dicionário. Já reparou a facilidade com que eles se sobrepõem, se acumulam e se instalam no nosso peito, principalmente nos dias em que resolvemos dar uma paradinha para pensar na vida? São tantos e às vezes tão grandes que não caberiam, definitivamente, naquele peitinho aveludado, por mais estufado que seja.
Acredito que essa capacidade que a gente tem de fazer tantas coisas, pensar sobre elas, senti-las, guarda-las e lembra-las, é o que nos faz gente. Me sinto abençoada por dispor de todas as ferramentas para lidar com estas complexidades da vida, embora não agradeça tanto e tão frequentemente quanto deveria. O fato é que também é um desafio, saber até onde devemos ser gente, e a partir de onde devemos ser um pouco passarinho. Manter simples o que pode ser simples, focar no que é realmente importante, e cantar, até mesmo antes de o inverno acabar. Esse aí da janela acabou de voar. Quando ele voltar, vou ver se peço umas dicas.
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Foto: Carlos Pompeu |