Há 2 semanas fomos incumbidos de cuidar da Jezebel. Uma cachorrinha Beagle, no auge dos seus 16 anos de idade canina. Fazendo as contas, em anos de gente, passa dos 100. A dona dela precisou viajar às pressas, é estrangeira e não conhece ninguém aqui, estava desesperada. Fomos bonzinhos em perguntar sobre a cachorra. Sobrou para a gente.
Devo dizer que conhecer a Jezebel me ensinou algumas coisas muito importantes. Ela tem tudo o que gente velha tem. Uma artrose danada nos quadris, que faz com que ela escorrege toda hora quando anda no chão liso. Nao escuta absolutamente nada. Voce pode bater palma, assobiar, deixar cair panela no chao. Não adianta, ela nao vem. Às vezes nao percebe que ainda está fazendo xixi, e sai andando por aí com os pinguinhos ainda caindo. É cheia de manias. Só dorme se for em lugar alto, no sofá ou na cama, de preferência. No chão, só a soneca da tarde, e olha lá. Ela é magrinha, tem o pêlo curtinho para não agravar o problema de pele, fica horas sentada olhando para o nada, e vai aos poucos curvando as costas, devagarzinho, ficando cada vez mais corcunda e deixando a cabeça pescar de sono, até que deita e dorme. Fui então pensando que iríamos lá na casa dela umas duas vezes por dia, só para trocar a comida e levá-la na rua uns minutinhos, até ela se cansar. E torcer, é claro, para não acontecer o pior, pelo menos até a dona dela voltar…
Mas foi só pegarmos a coleira da Jezebel no primeiro dia de visita, para perceber que, pelo menos no que depender da vontade de viver, ela ainda tem muito chão pela frente. E por falar em chão, haja calçada, canteiro, rua... A mera visão da coleira transforma aquela senhorinha cansada em um filhote cheio de energia, afoito, estabanado, puxando a gente na marra pela escada abaixo, e derrapando ao longo do caminho em cada um dos 4 andares até o térreo. Em questão de segundos acontece a transformação. É só ver a coleira, e ela dá um pulo acompanhado daquela arrebitadinha típica da traseira (com uma abaixadinha típica da dianteira), olhando para a gente com aquela cara de “vamos logo, o que você está esperando?”. Uma vez na rua, lá vai ela cheirando tudo freneticamente, cada poste, cada porta, cada moita, com o mesmo interesse de um cachorro novinho que sai para passear pela primeira vez. O rabinho antes baixo e sem vida, aponta imediatamente para cima, e bate de um lado ao outro sem parar, assim que aparece outro cachorro na mesma calçada.
Fiquei pensando em como pode a Jezebel, tao vivida, ainda se empolgar com essas coisas tão simples: coleira, canteiro, calçada. Esquecer das dores e ganhar vida nova todos os dias, na hora do passeio. Quantos postes e quantas traseiras de outros cachorros ela já não deve ter cheirado nesta vida? Se ela fosse gente, talvez a sua alegria fosse o dia de ir ao bingo, ou de viajar com as amigas para Águas de Lindóia. Vale também. Vale o que faz você, eu e a Jezebel voltarmos a ser crianca, nem que seja por alguns instantes. E se acontecer da gente ficar triste ou desanimado de vez em quando, que seja só até o próximo poste.