Certo dia me contaram que existia algo chamado “Tandem”.
“Tandem” é aquela bicicleta de dois lugares, para pedalar em dupla, em um
esforço de cooperação onde dois suam juntos para chegar a um lugar comum. A
minha experiência com Tandem não teve pedal nem selim, embora o propósito demandasse
também muito esforço e bastante suor. Aliás, bota suor nisso, para um propósito
tão esdrúxulo: aprender alemão. E rápido .
O Tandem de línguas é basicamente o encontro semanal
de duas pessoas onde uma quer aprender a língua da outra. As vantagens são
muitas, a começar pelo custo zero. Além disso, não existe a relação professor aluno, onde um
sabe tudo e o outro sabe nada. Não. No Tandem o outro fala a sua língua tão
ridiculamente quanto você fala a dele. Assim, a sua vergonha e martírio podem
durar uma hora. Mas na segunda hora do encontro, o jogo inverte, e no seu
idioma é você quem está por cima da cocada branca. Assim fica mais fácil.
Logo que chegamos em Berlim e soube desta
história, saí à busca de um parceiro de Tandem. Foi uma medida de desespero, para tentar atender às expectativas da minha nova chefe. Segundo ela, em uns 6 meses eu
deveria ser capaz de acompanhar as reuniões do departamento na língua local. Ops, isto não estava
no meu contrato. E como no Google só não se acha o que ainda não foi
inventado, lá estava o anúncio de um professor universitário, alemão, morando
em Berlim, que precisava aprender Português com urgência, também por conta do seu trabalho. Parceiro identificado, primeiro encontro marcado - novamente com a ajuda
do Google, mas desta vez o Translator. Eu fingindo que já sabia escrever um
pouquinho de Alemão, e ele fingindo que sabia escrever um pouquinho de Português. O local e
horário estavam marcados, mas como a gente iria se reconhecer? Ele escreveu que estaria lá, na hora marcada,
com um “ cachecol lilás e sapatilhas douradas”. O que, sapatilhas? E douradas???
Bem, pelo menos a história da sapatilha me
tranquilizou quanto ao perigo de tratar-se de um maníaco em busca de vítimas.
Que assassino compareceria ao local do crime logo depois de sair da aula de Ballet?
Certamente uma gafe do Google Translator (que ajuda, ajuda, mas também não faz
milagre!).
Bem, fui até o café, mas não sem antes deixar
com alguém o endereço exato de onde eu estaria, horário do encontro, e pedir para
o meu marido me dar uma ligadinha uns 15 minutos depois, só para checar se eu ainda estava
viva e não amarrada no porta-malas de um carro. Coisa de quem vivia em São
Paulo. Encontrei o meu parceiro de Tandem com o cachecol lilás e com um par de
tênis completamente normais, talvez com alguns detalhes em amarelo. Nada mais. Ufa!
Depois disso, nos encontramos quase que
ininterruptamente, todas as semanas, pelo prazo de quase 2 anos.
Meu parceiro de Tandem estava aprendendo Português de Portugal, e o treino semanal com o meu
sotaque do Brasil deve ter mais atrapalhado do que ajudado, especialmente no
início. Ele se conformou com as diferenças de pronúncia, assim como com a minha impontualidade, afinal, trata-se de um traço cultural brasileiro... A cada
dia, conseguíamos nos expressar melhor, um no idioma do outro. Nos corrigíamos
sem qualquer milonga, interrompíamos o papo para fazer anotações, dávamos
risada dos erros próprios e do outro. Assunto nunca faltou. Falamos de
banalidades, diferenças culturais, música brasileira, cinema alemão, e de
coisas essenciais do tipo como pedir para o cabelereiro cortar apenas as pontinhas do seu cabelo (dica da
maior importância, que nunca irei esquecer!). Compartilhamos problemas do trabalho,
assuntos de família, e por vezes, infelizmente, também temas tristes. Mais do que Alemão, aprendi que é
possível pessoas de culturas tão distintas, que nunca haviam se encontrado e
que provavelmente nunca iriam se encontrar, virem a se identificar e perceberem
que sentimentos humanos são iguais onde quer que seja, não importa o idioma em que são expressados. Passei a admirar e torcer pelo meu Parceiro de Tandem,
celebrando os seus acertos no Português, seu progresso assustadoramente rápido
na língua (com sotaque perfeito de Português de Portugal, digno de piada de
padeiro), e acompanhando, de alguma forma, alguns fatos importantes da sua
vida. E vice e versa.
Mantemos contato esporádico agora, por e-mail,
por vezes em Português, por vezes em Alemão. Soube que o meu parceiro de Tandem
passou por momentos difíceis nos últimos
dias, o que me fez sentir a dor dele, ainda que a distância, e refletir sobre
estas coisas que mencionei acima. Já não
estamos mais tão próximos, e também não poderia fazer nada para ajudar, mas gosto de pensar que continuamos conectados pela
correia de uma amizade sincera, que nasceu na época daquelas pedaladas, ainda
com as polêmicas sapatilhas douradas.
Fonte: http://content.lib.washington.edu/cdm4/item_viewer.php?CISOROOT=/cchs&CISOPTR=160