...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Sapatilhas Douradas

Certo dia me contaram que existia algo chamado “Tandem”. “Tandem” é aquela bicicleta de dois lugares, para pedalar em dupla, em um esforço de cooperação onde dois suam juntos para chegar a um lugar comum. A minha experiência com Tandem não teve pedal nem selim, embora o propósito demandasse também muito esforço e bastante suor. Aliás, bota suor nisso, para um propósito tão esdrúxulo: aprender alemão. E rápido .

O Tandem de línguas é basicamente o encontro semanal de duas pessoas onde uma quer aprender a língua da outra. As vantagens são muitas, a começar pelo custo zero. Além disso,  não existe a relação professor aluno, onde um sabe tudo e o outro sabe nada. Não. No Tandem o outro fala a sua língua tão ridiculamente quanto você fala a dele. Assim, a sua vergonha e martírio podem durar uma hora. Mas na segunda hora do encontro, o jogo inverte, e no seu idioma é você quem está por cima da cocada branca. Assim fica mais fácil.

Logo que chegamos em Berlim e soube desta história, saí à busca de um parceiro de Tandem. Foi uma medida de desespero, para tentar atender às expectativas da minha nova chefe. Segundo ela, em uns 6 meses eu deveria ser capaz de acompanhar as reuniões do departamento na língua local. Ops, isto não estava  no meu contrato. E como no Google só não se acha o que ainda não foi inventado, lá estava o anúncio de um professor universitário, alemão, morando em Berlim, que precisava aprender Português com urgência, também por conta do seu trabalho. Parceiro identificado, primeiro encontro marcado - novamente com a ajuda do Google, mas desta vez o Translator. Eu fingindo que já sabia escrever um pouquinho de Alemão, e ele fingindo que sabia escrever um pouquinho de Português. O local e horário estavam marcados, mas como a gente iria se reconhecer? Ele escreveu que estaria lá, na hora marcada, com um “ cachecol lilás e sapatilhas douradas”. O que, sapatilhas? E douradas???

Bem, pelo menos a história da sapatilha me tranquilizou quanto ao perigo de tratar-se de um maníaco em busca de vítimas. Que assassino compareceria ao local do crime logo depois de sair da aula de Ballet? Certamente uma gafe do Google Translator (que ajuda, ajuda, mas também não faz milagre!).

Bem, fui até o café, mas não sem antes deixar com alguém o endereço exato de onde eu estaria, horário do encontro, e pedir para o meu marido me dar uma ligadinha uns 15 minutos depois, só para checar se eu ainda estava viva e não amarrada no porta-malas de um carro. Coisa de quem vivia em São Paulo. Encontrei o meu parceiro de Tandem com o cachecol lilás e com um par de tênis completamente normais, talvez com alguns detalhes em amarelo. Nada mais. Ufa!

Depois disso, nos encontramos quase que ininterruptamente, todas as semanas, pelo prazo de quase 2 anos. Meu parceiro de Tandem estava aprendendo Português de Portugal, e o treino semanal com o meu sotaque do Brasil deve ter mais atrapalhado do que ajudado, especialmente no início. Ele se conformou com as diferenças de pronúncia, assim como com a minha impontualidade, afinal, trata-se de um traço cultural brasileiro... A cada dia, conseguíamos nos expressar melhor, um no idioma do outro. Nos corrigíamos sem qualquer milonga, interrompíamos o papo para fazer anotações, dávamos risada dos erros próprios e do outro. Assunto nunca faltou. Falamos de banalidades, diferenças culturais, música brasileira, cinema alemão, e de coisas essenciais do tipo como pedir para o cabelereiro  cortar apenas as pontinhas do seu cabelo (dica da maior importância, que nunca irei esquecer!). Compartilhamos problemas do trabalho, assuntos de família, e por vezes, infelizmente, também temas tristes. Mais do que Alemão, aprendi que é possível pessoas de culturas tão distintas, que nunca haviam se encontrado e que provavelmente nunca iriam se encontrar, virem a se identificar e perceberem que sentimentos humanos são iguais onde quer que seja, não importa o idioma em que são expressados. Passei a admirar e torcer pelo meu Parceiro de Tandem, celebrando os seus acertos no Português, seu progresso assustadoramente rápido na língua (com sotaque perfeito de Português de Portugal, digno de piada de padeiro), e acompanhando, de alguma forma, alguns fatos importantes da sua vida. E vice e versa.

Mantemos contato esporádico agora, por e-mail, por vezes em Português, por vezes em Alemão. Soube que o meu parceiro de Tandem  passou por momentos difíceis nos últimos dias, o que me fez sentir a dor dele, ainda que a distância, e refletir sobre estas coisas que mencionei acima.  Já não estamos mais tão próximos, e também não poderia fazer nada para ajudar, mas gosto de pensar que continuamos conectados pela correia de uma amizade sincera, que nasceu na época daquelas pedaladas, ainda com as polêmicas sapatilhas douradas.

Fonte: http://content.lib.washington.edu/cdm4/item_viewer.php?CISOROOT=/cchs&CISOPTR=160