...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Em mãos

Hoje parei para olhar para você, hipnotizada pelos seus olhões de jabuticaba, e fiquei com uma vontade enorme de dizer um monte de coisas que, aos 2 anos de idade, suspeito que você ainda não vai entender. Eu disse algumas delas mesmo assim. Mas agora que você dormiu – o que vem ocorrendo cada vez mais tarde da noite -, recorri ao teclado para registrar esta vontade por escrito, não deixar este sentimento escapar pela boca e se dissolver na forma de som, que se perde no ar e pode nunca mais ser encontrado. Preso na forma de letrinhas, talvez eu consiga me lembrar deste sentimento em alguns anos, e talvez eu ainda consiga te mostrar um pouquinho dele.

Quando olho para você, vejo a imagem da coragem. Acho um paradoxo olhar para uma pessoa tão pequena, e pensar em uma qualidade com esta, normalmente das pessoas grandes e fortes. Na sua pequeneza e fragilidade de criança, você nos dá diariamente uma lição de coragem.  Afinal de contas, depois de apenas 4 ou 5 visitas, te tiramos de um dia para o outro do lugar que era tudo o que você conhecera desde que nasceu. Te tiramos da companhia das titias que te cuidaram com tanto carinho e te amaram nestes 2 anos de vida, e que eram as únicas pessoas com quem você havia tido contato. Te trouxemos para uma casa nova, te apresentamos dezenas de rostos que você nunca tinha visto (e que pedem beijos toda hora como gente grande tem mania de fazer).  Mudamos o tempero da sua comidinha (muito provavelmente para pior, já que sou eu que cozinho), te colocamos para dormir sozinha em um quarto com uma cama, quando você estava acostumada a dormir no berço e na companhia de vários bebês como você. E para piorar, na sua chegada deixamos cair a sua chupeta atrás do banco do carro, e nunca fomos apanhar. 

Resultado? Nenhuma lágrima, nenhuma expressão ou palavra de medo ou insegurança, desde que entrou pela nossa porta.  Nenhuma! É como se aos 2 anos de idade você tivesse conscientemente decidido virar uma página da sua vida, aceitando com alegria e coragem tudo o de novo que viria pela frente, desde o dia em que fomos te buscar. Lembro bem quando nos contaram que, no dia da sua vinda, você estava desde cedo com a malinha pronta, esperando que abrissem o portão para ir para o que tinham te contado ser a “casa nova”. Quem reage assim a mudanças? Conheço gente que gastou horas com o terapeuta por muito menos. Eu mesma já fiz drama por não querer mudar de sala no trabalho. Sim, como toda criança você também chora, é claro. Mas chora para ficar mais tempo na balança, para não ter que escovar os dentes, porque estão soltando fogos lá fora ou porque quer comer mais bolo. Nunca acordou de noite chamando por um nome que não fosse papai ou mamãe. Nunca sequer sugeriu não ser esta a sua casa. O nosso maior medo, que era você estranhar tantas mudanças e se sentir insegura, nunca se concretizou. Naquela primeira noite aqui em casa, você dormiu tranquila por 12 horas ininterruptas, e eu, umas 2.  

Quando olho para você, vejo também a imagem da desmistificação. O colo sempre compartilhado, a espera mais longa para atenderem ao seu choro, o brinquedo que talvez não fosse o mais estimulante, a falta de alguns dos tantos mimos que cercam os bebês que crescem em casa, à base da melhor fórmula e complemento vitamínico importado... nada disso te impediu de se tornar uma criança perfeita, linda, meiga e esperta, que chama a atenção aonde vai.  Aprende absolutamente tudo o que ensinamos, e nos surpreende quando aprende o que não estávamos sequer cientes de ter ensinado. Ver você descobrir o mundo, aprender tantas palavras por dia, contar até dez, tentar contar até vinte, imitar os bichos que viu no zoológico, lembrar o nome dos nossos amigos, mandar a gente calçar os sapatos por que “o chão tá frio”, cantarolar musiquinhas, perguntar o tempo todo “o que é isso aqui?”, dançar ballet sempre que escuta música clássica no rádio, colocar o CD para tocar sem ajuda, pedir para fazer xixi, querer vestir a roupa sozinha, querer tirar a roupa sozinha, querer fazer tudo sozinha, nos passar pelo menos uma rasteira por dia, com as suas tiradas impagáveis... é como destruir, de uma só vez, muitos dos mitos que ouvimos por aí, sobre o que de fato é necessário para o desenvolvimento infantil saudável.  

Enfim, quando olho para você, vejo acima de tudo a mão de Deus. A mão que nos levou até você, no mar de cadastros, registros, listas de pretendentes, pilhas e pilhas de papeis, balcões de cartórios,  prazos legais e burocracias, servidores públicos motivados e às vezes nem tanto.  A mão que te guardou, te protegeu e te sustentou este tempo todo, te entregando para ser cuidada por tantas (e tão abençoadas) mãos neste período, até que pudéssemos nós mesmos te cuidar. A mesma mão que um dia, se Deus quiser, nos permitirá te entregar esta carta, em mãos, quando você puder entender, direitinho, tudo o que tentei escrever nela. A mão que nos permite hoje segurar bem firme na sua, e te dizer de boca cheia e cheios de gratidão: “dá a mão para a mamãe”, “dá a mão para o papai, dá?”.

Foto: Nilce Pompeu