...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Eu, o Lucas e as nossas dores



Se a espera pela Giovanna, nossa primeira filha, foi uma gravidez de desconforto  infindável (pela longa demora de  quase 5 anos na fila da adocão), foi o momento da chegada da Agatha – e não a espera por ela - uma das dores mais agudas que já senti. Um parto de contrações ininterruptas que durou mais de uma semana.

Conhecer sua pequena filha, tão esperada, e não poder trazê-la para casa imediatamente, é uma prova de nervos. É parecido com o drama das mães que deixam bebes na UTI do hostpital, quando nascem prematuros. Voltam para um quarto de bebê vazio, ainda sem  ocheiro ou o barulho que todo quarto de bebê merece ter.

Passar o dia todo trocando calor e olhares com aquele nosso pequeno sonho que se concretizou, e à tardinha dizer tchau. Colocar a criança que já amei nos primeiros instantes, de volta nos braços de alguém que faz o melhor que pode, com poucos recursos e tendo mais dezenas de crianças e adolescentes para cuidar.

Como doía o meu coração cada vez que eu estendia os braços neste movimento ingrato, de entregar minha filha para vê-la novamente só no dia seguinte, no horário permitido de visita. Algumas vezes a entrega teve que ser a uma ou outra adolescente, também abrigada no local, pela falta de braços da equipe de cuidadores no momento da troca de  turno. Eu me oferecia para ficar pelo menos mais um pouco, niná-la e coloca-la no berço eu mesma. Mas não era possível acomodar a rotina que eu idealizava para a minha bebê, em meio a criançada maior que precisava ainda jantar, tomar banho e os adolescentes que tinham seu momento de conversar alto, assistir TV e ouvir musica (funk) em volume perturbador, no porão escuro e de chão frio, onde ficavam todos juntos até mais tarde, na hora de subir para os quartos e dormir.

Ia embora com o coração oscilando entre a tristeza profunda da impotência, e a alegria aguda por saber que aquele desejo já tinha nome e rosto, só não estava em casa ainda.

Durante as noites, que acredito tenham sido as mais frias do inverno deste ano, não parava de ouvir na minha cabeça aquele chiado pertubador do peito dela, que por óbvio precisava de um tratamento mais efetivo do que a inalação apenas com soro que vinham fazendo, ainda que diligentemente por lá.  E a aflição so aumentava quando a Giovanna me perguntava inconformada, com uma expressão inquisitória:

_ Mae, como você pode deixar a minha irmã lá?

Foi mesmo um parto dolorido. Mas tendo a crer que havia um motivo para esta demora. A dor do outro, personificada no Lucas.

Aquele menino especial de 16 anos, que esteve ali desde bebê, abandonado por conta da sua deficiência. Durante todas as minhas longas visitas à Agatha nesta semana, o olhar perdido dele se fixava por alguns instantes nela, e ele vinha, com seu andar cambaleante e seu descontrole motor, beijar a bebê que amava. Quantas Agathas, bebês saudáveis, bonitos e perfeitos, ele viu chegar ali, e sair nos braços amorosos de pais que ele não teve e nunca terá. E minha dor incluía, devo confessar com vergonha, o sentimento de receio pela integridade física da Agatha, que este rapaz insistia em pegar no colo, apesar de não ter condições motoras para isto.

Na noite de quarta-feira em que finalmente foi emitido o termo de guarda pelo fórum, fomos eufóricos, em família, buscar a nossa bebê lá. Ao tocar a campanhia, pela primeira vez eu notei que da rua era possível ver uma janela, a janela do quarto dos meninos grandes. A luz estava apagada, mas pude reconhecer perfeitamente a silhueta do Lucas, que olhava fixamente na direção do portão, onde estávamos. Imóvel, sem os movimentos oscilantes e involuntários que costumava fazer. Ele acenou para mim. Parecia mesmo saber que era a última visita, e que não veria mais esta sua bebê. Ao menos não até a chegada da próxima na casa.

A minha grande dor havia finalmente terminado naquela noite. Mas a do Lucas não.