...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Céu de brigadeiro

Dizem que Deus tem um plano para a vida de cada um de nós. Acredito nisso. Mais quando vejo algumas coisas inesperadas acontecerem. Menos quando olho da janela do avião e vejo como é pequeninha essa nossa vida, da perspectiva de quem está no céu.

Nesta última semana, encontrei, por alguns caminhos que andei percorrendo, pessoas que parecem ter sido colocadas bem ali, na minha frente, com algum propósito.

Dois homens, um brasileiro, outro estrangeiro, e duas crianças de 3 anos de idade, um menino e uma menina, falando inglês, na fila do embarque da TAM. Ausente qualquer semelhança física com os adultos, presente um laço invisível entre os 4 membros daquilo que em poucos segundos entendi ser uma família. Um tanto alternativa, é verdade. Mas uma família. Dentre as quase 150 poltronas da aeronave, o lugar deles era, justamente, ao lado do nosso. É claro. E se a vida passa bem na nossa frente com a bandeja de docinhos, nos cabe, no mínimo, esticar a mão e apanhar ao menos um brigadeiro. Puxei conversa e em poucos minutos lá estávamos nós, um grupo de desconhecidos, com algo muito profundo em comum. Fomos presenteados comum um belo relato sobre a experiência da adoção, e sobre como, apesar das muitas dificuldades (neste caso agravadas pela peculiar condição dos adotantes) as coisas acontecem quando têm que acontecer. Um belo dia, até o telefone deles tocou. Era hora de buscar os gêmeos, que acabavam de nascer.

Hoje, em outro aeroporto, e outro contexto, lá estava a bandeja de brigadeiro novamente. Reunião de trabalho encerrada antes do esperado, vôos já marcados, tempo para conversar sobre outros assuntos que não os contratos e processos de todo dia. Um diretor com quem trabalho há bastante tempo, por quem tenho profunda admiração profissional e pessoal, compartilhou comigo, inesperadamente, o fato dos seus filhos (sobre os quais já ouvi tantos relatos, apaixonados) serem adotados. Mais uma mostra gratuita e inesperada de valiosas experiências, gasolina para o tanque do entusiasmo, que vez ou outra fica na reserva.

De fato nossa vida, assim como nossas pequenas angústias, ansiedades e problemas, são minúsculos pontinhos, se vistos lá de cima, da janelinha do avião. Isso quando o céu não está nublado como hoje, em que praticamente não se vê nada aqui em baixo. Mas das duas uma: ou Deus está mais perto do que pensamos, aqui em baixo mesmo, ou tem um sistema de visualização ultra moderno, que mesmo lá do alto enxerga nosso coração em detalhe, e, para o qual o céu... é sempre de brigadeiro.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Dona Maria

Por muitas vezes nos perguntamos a que veio ao mundo a D. Maria. Desde mocinha, segundo ela mesma conta, pouco uso fez das próprias pernas. Não sei bem como ela e o Sr. João se conheceram, e o que o levou a adotá-la como esposa (sim, este é o termo mais apropriado). O fato é que ele cuidou dela como um pai. Durante 50 anos de convívio, lhe levou o café na cama, fez o almoço e a feira. Até que, há alguns anos, decidiu vagar o posto e foi embora deste mundo para um merecido descanso, deixando a D. Maria por aqui, mais dependente do que a encontrou.

As 2 meninas às quais a D. Maria deu a luz, cuidam dela como se dela fossem mães. Não só agora, mas desde crianças. Nada mais justo do que 2 pequenas mães para alguém que perdeu a sua própria, aos 9 anos, e ainda ficou encarregada de comprar as flores para o enterro. Um trauma cujas conseqüências permearam toda a sua vida, assim como a das pessoas que com ela conviveram.

D. Maria não deixava a filha sair para ir à escola a menos que a menina – com 7 anos de idade – arrumasse e trouxesse alguém para fazer companhia à mãe. Caso contrário, batia a cabeça na parede. Jurava que ia se matar. Dizia que era muito doente, e que não duraria muito. A menina ouvia apavorada, largava os cadernos no chão e voltava para dentro de casa, com medo de ser a causadora de uma tragédia. Tanto ela obedeceu, que D. Maria sobreviveu, e hoje, aos 85 anos, por vezes ainda usa o mesmo argumento.

Curioso como D. Maria jamais perdeu o juízo. Por maiores que fossem os surtos de pânico, sua lucidez em momentos de calma sempre foi invejável. Ou você conhece muitas senhoras desta idade que sabem de cor a escalação do Corinthians?

As filhas não têm um pingo de ressentimento da D. Maria. Ao contrário, cuidam dela com um zelo imenso, que poderia até ser classificado como excessivo, não estivéssemos falando desta figura peculiar. Tenho a impressão de que, assim como a natureza molda a aparência dos bebês, para que despertem nosso instinto de cuidado e proteção, ela parece ter feito com a D. Maria. A despeito de todo o trabalho que ela já deu, e das cenas que ela já aprontou, o seu rostinho tão marcado pelo tempo segue apagando as memórias ruins e aumentando o desejo de lhe proporcionar alegria e bem estar. Desejo este que mobiliza não só as filhas, mas também genros, netos e companhia.

Conheci a D. Maria já no seu (tímido) papel de avó, e a maior parte do que relatei acima me foi contado, e não vivido. O que sei é que hoje ela voltou para casa, de uma curta estada no hospital, e que, pela primeira vez, sua lucidez parece estar dando espaço para alguns episódios de ausência. Com base no histórico, tenho certeza de que é Deus, mais uma vez, trabalhando para poupá-la dos sofrimentos dessa fase da vida.
Tem muita sorte mesmo, essa D. Maria. Pra falar a verdade, nunca foi DONA de nada, nem da própria vida, mas, de um modo ou de outro, sempre teve quem cuidasse desse precioso bem para ela... e com olho de dono!