Faço tudo para evitar o pensamento que insiste em vir a minha mente, enquanto escuto com atenção o vizinho explicar que mora aqui mas trabalha em Rostock, que é professor universitário, que sua mulher vem da Suécia, que gosta de Berlin por causa disso e daquilo, que ainda bem que a agora a chuva parou, que gostou muito da América Latina quando esteve lá há quatro anos, que achou uma ótima ideia essa festinha do condomínio para a gente se conhecer melhor, que agora vai experimentar a sobremesa, etc., etc.
Não posso pensar, não posso pensar, não posso pensar... pronto pensei: “será mesmo verdade que estou entendo tudo o que ele está falando? Não pode ser, meu Deus... isso é alemão”!
E é aí, precisamente, quando sucumbo a este pensamento, que a vaca vai para o brejo, ou iria, se tivesse um brejo por aqui. Me desconcentro, perco um montão de frases, uma atrás da outra. Preciso respirar fundo e pedir gentilmente para que a pessoa repita o que acabou de dizer, se possível um pouquinho mais de vagar (“langsam, bitte!”).
A gente sempre escuta dizer que é capaz de aprender qualquer coisa, que é só uma questão de tempo e oportunidade. Tenho tido na minha vida, experiências um tanto ilustrativas neste sentido, embora tenda a esquecê-las nos momentos de dificuldade e frustração. Oportunidade mais cinco anos de estudo pode resultar, por exemplo, em um dentista ou um advogado. Dez anos, e muita oportunidade, podem até resultar nos dois.
Retrospectivas à parte, o certo é que alguma coisa está acontecendo bem agora aqui dentro da minha cabeça. É algo misterioso, místico, um milagre. Ainda tem muita coisa que não entendo, mas a quantidade de informação que consigo depreender de uma conversa, como aquela com o meu vizinho, é espantosamente maior do que há alguns poucos meses atrás. Já não posso dizer que alemão para mim é grego. É difícil pacas, mas é alemão.
Se isso não for um fato sobrenatural, então não sei o que pode ser. Quem foi que fez nossa cabeça assim tão maleável, a ponto de ser capaz de absorver, ainda que aos poucos, algo tão espesso e viscoso como essa língua? Quem foi que projetou nossos ouvidos de uma forma que, depois de certo tempo, aprendem naturalmente a reconhecer o que passaram trinta e tantos anos sem nunca ouvir? Só espero que este mesmo projetista (que eu sei muito bem quem é, e você também) dê ainda um jeito na minha garganta. Esse modelo brasileiro de “campainha” requer uma adaptação, para que um dia eu consiga pronunciar o “R” daqui, sem ninguém fazer careta e pedir para eu repetir a palavra três vezes. Tá bom, às vezes quatro.