Redigir contratos é atualmente minha principal atividade, e de vez em quando trago alguns para casa.
Neste tipo de trabalho precisamos ser absolutamente precisos ao manobrar as palavras, de modo que geralmente não
há espaço para escrever sobre coisas vagas como sentimentos, incluindo os de indignação. Mas como
tem hora que alguns deles - os sentimentos - não podem mais ser contidos,
faço agora uma breve pausa. Uma pausa para o café, ou melhor, para o muro.
Sempre que o clima permite, vou
para o trabalho de bicicleta. Assim já começo o dia com uma forma de lazer, ar
fresco, exercício e a sensação de liberdade que carro nenhum – e nem trem
nenhum – pode proporcionar. De bicicleta se presta mais atenção em tudo o que
existe ao longo do caminho, em uma velocidade que permite observar, e interagir
imediatamente com o que está à volta do caminho. É só parar e subir na calçada,
para ver mais de perto aquela vitrine que mudou, ou aquele poste com um anúncio
do novo filme que entrou em cartaz. E é
nesta pequena jornada diária de 20 minutos, que passo todos os dias por um
lugar em que nunca na minha vida tinha imaginado passar, sequer uma vez, antes
de morar aqui. A rua chamada Bernauer Straße, é um tanto especial. Ela margeia
um trecho grande do que sobrou do muro de Berlim.
Sempre que passo por lá, e vou vendo aquele
muro passar à minha direita (ou esquerda, dependendo se estou indo ou
voltando), não posso deixar de pensar no que aquele pedaço de concreto significa.
Hoje, é um ponto turístico. Tem sempre um japonês com uma máquina fotográfica
bacana, gente brincando de passar de um lado para o outro, grupos de
adolescentes com professores, mais interessados na hora do lanche do que na
explicação. Mas o que me deixa mesmo perplexa, é pensar em tudo que ele já
significou.
Como podemos nós, seres humanos, com organismos
e mentes tão complexas, capazes de pensar e aprender coisas tao sofisticadas, muitas
vezes ocupados com temas tão abstratos quanto política, relacionamentos ou religião,
sermos subitamente restritos ou impedidos de fazermos o que queremos ou
planejamos, por uma coisa tao ridiculamente simples como uma pilha de tijolos,
ou uma placa de concreto? Tem coisa mais absurda do que pensar que casais
apaixonados deixaram de se casar, familiares passaram natais sem se ver, amigos deixaram
de poder se reunir para beber cerveja juntos, por quase 30 anos, por causa de
uma coisa tão ofensivamente simples quanto um muro? Muro é coisa que serve para dividir o
quintal de sobrado geminado, um negócio que a gente manda levantar para o
cachorro não fugir, ou para o vizinho não ver a gente na piscina. Muro é feito para colar cartaz. Muro não
deveria ter cacife para mudar a vida de ninguém. Como pode então este, que embora famoso,
também não passa de um muro, ter mudado a vida de tanta gente, por tanto
tempo, e tirado a vida de outras tantas outras que tentaram transpô-lo, protegê-lo
ou estavam perto dele na hora errada? Foram precisamente 135.
Você pode achar sem pé nem cabeça, essa minha
indignação, mas acho que é a mesma coisa que sente o preso em relação à barra
de ferro, quem ficou para fora de casa em relação à lingueta da fechadura, ou o
ferido de tiro em relação à bala. Coisas tão ridiculamente simples, inertes,
feitas pelo homem e não dotadas de qualquer inteligência, mudando o destino da
gente. Nos mantendo do lado em que não queremos estar, ou até tirando a
vida. Não é como um oceano Atlântico separando um exilado da sua terra, ou como
uma doença complexa cuja causa ninguém conhece, ou como um grande amor que um
dia acaba. Estas coisas geram igualmente muita tristeza, mas há o consolo da sua
imensidão ou da nossa incapacidade em compreendê-las. Diferente da frustração que gera a impotência do homem diante de um muro. Se
eu, que tenho o muro como mera paisagem no caminho para o trabalho, não consigo
aceitar a idéia, imagina quem estava aqui na época, ter que se conformar com
este despautério?
Conheci aqui gente que não se conformou, ou
cuja família não se conformou, e que teve sorte de conseguir mudar de lado sem
se machucar ou ser preso. O curioso, é que tirando as fugas espetaculares que a
gente vê hoje relatadas nos documentários de TV (de balão, de tirolesa, no bagageiro do carro,
por debaixo da terra, e Deus sabe mais como), quem sentiu a história na pele,
não gosta de falar do assunto, e raramente conta como fugiu. Foi uma das
primeiras lições que aprendi quando cheguei aqui. Se para nós ouvir um relato
desses é uma curiosidade, uma ilustração mais colorida dos nossos livros
de história, para estas pessoas este pedaço de concreto ainda está incrustado
nas suas histórias de vida. Só de lembrar do silêncio que ouvi quando fiz a pergunta pela
primeira (e única vez), voltei hoje a engolir seco. Fim da pausa, e eu acabei nem indo buscar
meu café.
Duas mulheres acenando em 26 de Agosto de 1961 para filhos e
netos em Berlim oriental.
(Hulton-Getty/ddp. Fonte: LuczBoge's Blog)
Depois de passar por Berlim, ver o Portal de Brademburgo e o famigerado muro de perto, é impossível ficar indiferente, e quanto mais se lê, menos se entende como a busca pelo poder faz com que indivíduos interfiram de forma tão nociva na vida de tantos.
ResponderExcluirMas também é muito bom de ver que, mesmo com a ferida ainda dolorida e mal cicatrizada, já há berlinense que consegue rir um pouco disso tudo e colocar um colorido especial na vida. Berlim certamente é uma cidade a qual eu voltarei a visitar.
Obrigado pelo texto compartilhado.
ResponderExcluirOntem estava assistindo o programa NY Ink e ouvi que as tattos são marcas que nos lembram um passado que pode nos ajudar no futuro. Este resto de muro é isso, uma "tatuagem" de Berlin que não pode ser esquecida mas lembrada para que o fururo seja diferente!
Que Deus continue os abençoando em Berlin! Abraços saudosos, Fabinho!
Dé, como sempre, amei o texto.
ResponderExcluirQuando mesmo vc. irá escrever um livro?? Certamente serei uma das primeiras na fila de autógrafos...não tenha dúvida!!!
Quanto ao muro, que o diga ós avós paternos do Rony....um pouco antes da guerra, sairam de uma Berlin moderna e cheia de tudo o que era bom, para virem morar no interior de São Paulo, no Brasil, uma país, que naquela época, não fazia nem menção do que é hoje....e olha que ainda nem chegamos lá (lá onde Berlin já estava)
Não vejo a ora de vcs. voltarem.....bjs!!!