Não pode ser por acaso que essas histórias
cruzam o caminho de quem gosta de escrever. Elas querem ser contadas para mais
gente, querem ser passadas adiante. Só podem querer. E fazem uma cócega na minha cabeça que começa
ainda enquanto eu as ouço, e que não cessa, por nada deste mundo, até que eu me
renda e resolva deixar a coceira passar da cabeça para os braços, descendo
pelas mãos até finalmente brotar nas pontas dos dedos e pular para as palavras colocadas na tela. Então vamos lá.
É curioso ver como mesmo as pessoas mais
fechadas e reservadas, diante de alguns assuntos mais pessoais ou sensíveis,
como por exemplo a nossa longa espera pela adoção, tendem a se abrir e contar
algo também pessoal ou difícil pelo qual elas passam ou tenham passado. E como
se o tema desencadeasse uma afinidade, uma espécie de simpatia, em que o outro
decide deixar cair uma barreira, e expor uma camada a mais de si mesmo, que nem
sabíamos que existia.
Como a médica que me atende há muitos anos e
que, me perguntando a quantas anda a fila, fala com certa mágoa como é importante
para uma criança viver em uma casa com a
atenção dos pais. Ela mesma, conforme vai me contanto pela primeira vez em
tanto tempo, não teve este privilégio. Com os olhos focados não mais em mim,
mas em um lugar distante do passado, me conta que cresceu em colégio interno, não
teve mãe. A mãe morreu por complicações do parto – do seu parto! - , por falta
de assistência , em uma vila onde não havia hospital. Mas esta não é uma
história apenas triste, que termina aí. A menina, filha de mãe que morreu de
parto, estudou, virou médica e adivinhe
de que especialidade? Sim, a obstetra já perdeu a conta de
quantas mães ajudou, na mesma hora de dificuldade em que a sua própria mãe não
teve ajuda. Quando pergunto, abobalhada
com a história, se a escolha pela especialidade foi consciente, ela diz que
não, que por coincidência havia uma oportunidade de estágio na obstetrícia ao
fim da faculdade, e coisa e tal... Mas conta também emocionada que, já adulta e formada, veio a descobrir que que a mãe - que não chegou a conhecer – dizia que sonhava que uma das suas filhas viesse a aprender este ofício na época tão prestigiado: a profissão de parteira. Dá para não se intrigar?
Já o clínico
geral que me atendeu outro dia, ao perguntar se tenho filhos e ouvir a
resposta, fez o clássico comentário sobre o enorme número de crianças abandonadas
no nosso País, e me contou que há mais de 30 anos, ainda residente, auxiliando
o experiente médico de um hospital público já em vias de se aposentar, o viu,
por centenas de vezes, decidir de forma solitária que aquele bebê (já o 5º ou 6º
de uma mulher humilde, abandonada ou subjugada pelo pai alcoólatra das crianças),
seria o último daquela longa fila. No ato da cesariana, realizava por sua conta
e risco a ligadura das trompas, interrompendo em sigilo aquele ciclo de perpetuação de pobreza, convicto de que estava fazendo o melhor para aquela
mulher e para os filhos que ela já teve, sem consultar ninguém. Podemos julgá-lo? Bem, passados 30
anos aquele velho herói anônimo, digo, velho obstetra, já não está nem mais por aí para ouvir a nossa sentença.
Histórias
totalmente distintas, só conectadas pelo fato de que me foram contadas por
pessoas que pararam para me fazer uma pergunta simples, e ouviram uma resposta
que por alguma razão as encorajaram a se abrir. Histórias que de alguma forma me tocaram, e me
fizeram pensar nas contradições da vida, e naquele ditado das linhas tortas. Sabe-se lá qantas mais existem por aí, na vida ou no passado de gente com
quem convivemos ou cruzamos todos os dias, e que se revelam quando menos
esperamos, bastando uma frestinha de oportunidade. A minha cosquinha agora passou, pelo menos por enquanto, até eu ouvir a próxima história que peça para ser contada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário