Hoje parei para olhar para você, hipnotizada
pelos seus olhões de jabuticaba, e fiquei com uma vontade enorme de dizer um
monte de coisas que, aos 2 anos de idade, suspeito que você ainda não vai
entender. Eu disse algumas delas mesmo assim. Mas agora que você dormiu – o que
vem ocorrendo cada vez mais tarde da noite -, recorri ao teclado para registrar
esta vontade por escrito, não deixar este sentimento escapar pela boca e se
dissolver na forma de som, que se perde no ar e pode nunca mais ser encontrado.
Preso na forma de letrinhas, talvez eu consiga me lembrar deste sentimento em
alguns anos, e talvez eu ainda consiga te mostrar um pouquinho dele.
Quando olho para você, vejo a imagem da coragem.
Acho um paradoxo olhar para uma pessoa tão pequena, e pensar em uma qualidade com
esta, normalmente das pessoas grandes e fortes. Na sua pequeneza e fragilidade
de criança, você nos dá diariamente uma lição de coragem. Afinal de contas, depois de apenas 4 ou 5
visitas, te tiramos de um dia para o outro do lugar que era tudo o que você
conhecera desde que nasceu. Te tiramos da companhia das titias que te cuidaram com
tanto carinho e te amaram nestes 2 anos de vida, e que eram as únicas pessoas
com quem você havia tido contato. Te trouxemos para uma casa nova, te
apresentamos dezenas de rostos que você nunca tinha visto (e que pedem beijos toda
hora como gente grande tem mania de fazer). Mudamos o tempero da sua comidinha (muito provavelmente
para pior, já que sou eu que cozinho), te colocamos para dormir sozinha em um
quarto com uma cama, quando você estava acostumada a dormir no berço e na
companhia de vários bebês como você. E para piorar, na sua chegada deixamos
cair a sua chupeta atrás do banco do carro, e nunca fomos apanhar.
Resultado? Nenhuma lágrima, nenhuma expressão
ou palavra de medo ou insegurança, desde que entrou pela nossa porta. Nenhuma! É como se aos 2 anos de idade você tivesse
conscientemente decidido virar uma página da sua vida, aceitando com alegria e
coragem tudo o de novo que viria pela frente, desde o dia em que fomos te
buscar. Lembro bem quando nos contaram que, no dia da sua vinda, você estava
desde cedo com a malinha pronta, esperando que abrissem o portão para ir para o
que tinham te contado ser a “casa nova”. Quem reage assim a mudanças? Conheço
gente que gastou horas com o terapeuta por muito menos. Eu mesma já fiz drama
por não querer mudar de sala no trabalho. Sim, como toda criança você também chora,
é claro. Mas chora para ficar mais tempo na balança, para não ter que escovar
os dentes, porque estão soltando fogos lá fora ou porque quer comer mais bolo. Nunca
acordou de noite chamando por um nome que não fosse papai ou mamãe. Nunca sequer
sugeriu não ser esta a sua casa. O nosso maior medo, que era você estranhar
tantas mudanças e se sentir insegura, nunca se concretizou. Naquela primeira
noite aqui em casa, você dormiu tranquila por 12 horas ininterruptas, e eu,
umas 2.
Quando olho para você, vejo também a imagem da desmistificação.
O colo sempre compartilhado, a espera mais longa para atenderem ao
seu choro, o brinquedo que talvez não fosse o mais estimulante, a falta de
alguns dos tantos mimos que cercam os bebês que crescem em casa, à base da
melhor fórmula e complemento vitamínico importado... nada disso te impediu de
se tornar uma criança perfeita, linda, meiga e esperta, que chama a atenção aonde vai. Aprende absolutamente tudo o que ensinamos, e
nos surpreende quando aprende o que não estávamos sequer cientes de ter
ensinado. Ver você descobrir o mundo, aprender tantas palavras por dia, contar
até dez, tentar contar até vinte, imitar os bichos
que viu no zoológico, lembrar o nome dos nossos
amigos, mandar a gente calçar os sapatos por que “o chão tá frio”, cantarolar musiquinhas, perguntar o tempo todo “o que é isso aqui?”, dançar
ballet sempre que escuta música clássica no rádio, colocar o CD para tocar sem ajuda, pedir para fazer xixi,
querer vestir a roupa sozinha, querer tirar a roupa sozinha, querer fazer tudo
sozinha, nos passar pelo menos uma rasteira por dia, com as suas tiradas impagáveis... é como destruir, de uma só vez, muitos dos mitos que ouvimos por aí,
sobre o que de fato é necessário para o desenvolvimento infantil saudável.
Enfim, quando olho para você, vejo acima de tudo a mão de
Deus. A mão que nos levou até você, no mar de cadastros, registros, listas de pretendentes,
pilhas e pilhas de papeis, balcões de cartórios, prazos legais e burocracias, servidores públicos motivados
e às vezes nem tanto. A mão que te guardou, te protegeu e te sustentou
este tempo todo, te entregando para ser cuidada por tantas (e tão abençoadas) mãos
neste período, até que pudéssemos nós mesmos te cuidar. A mesma mão que um dia,
se Deus quiser, nos permitirá te entregar esta carta, em mãos, quando você
puder entender, direitinho, tudo o que
tentei escrever nela. A mão que nos permite hoje segurar bem firme na sua, e
te dizer de boca cheia e cheios de gratidão: “dá a mão
para a mamãe”, “dá a mão para o papai, dá?”.
Foto: Nilce Pompeu