...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

O tímpano e o tempo

Foi de uma hora para outra mesmo. Assim como quem relata um mal súbito, uma vista ofuscada, ou uma pontada fatal no peito. Num minuto ouvia tudo perfeitamente: todos os barulhos daquela casa, altos e encavalados, como todo dia. No minuto seguinte, começou a ouvir o latido do cachorro estranhamente distante. Como se ele estivesse a muitos e muitos metros de distância, e não ali no quarto ao lado, brincando de puxar a pelúcia da mão da Carolina. 
Carolina, que apesar de ter só seis anos de assunto, falava mais que torneira aberta, uma palavra emendada na outra, sempre em volume além do necessário e às vezes sem parar para respirar, até lhe dar um engasgo. A irmã chorava aquele choro estridente de nenê com fome namadrugada, mas também de dia, fosse porque queria segurar a colher na hora de comer, ou porque caiu achupeta, qualquer coisa assim. E em cima da voz de uma e do choro irritante da outra, tinha também o latido do ChicoDe uns tempos para cá tinha dado para enfiar o focinho em baixo da fresta da porta ao menor movimento do elevador e latir que nem vira-lata de periferia no quintal. 
O que deu nesse bicho agora?  Já não basta essa gritaria em casa? dizia Maurílio, algumas vezes a ponto de pegar a chave do carro e fugir do caos sonoro em que tinha se tornado aquela casa
Quando eram só ele e Tereza, tomavam café expresso em silêncio de manhã, liam o jornal, e tinham o costume de ouvir jazz bem baixinho enquanto tomavam um vinho à tardinha, ao chegarem do trabalho. Dava para bater papo com tranquilidade, sem qualquer interrupção, e até ouvir um passarinho ali da árvore do jardim do prédio, já que a copa dava quase na janela do quarto. Que saudades tinha do tempo em que não precisavam de babá ou empregada:
– Por que a Marlene precisa falar tão alto, meu Deus? – reclamava para Tereza, que a tinha contratado. 
Antes das crianças, tudo se arranjava com mais facilidadeem casa. Não havia obrigação de almoço ou jantar. Uma torradaum patêestava tudo certo. A roupa era tão pouca que se podia levar na lavanderia às sextas-feiras. Agora, eram quilos de roupas na máquina e panela de pressão chiando alto logo cedo. 
As meninas precisam comer direito – dizia Tereza. 
A Tereza mesmo, que cantava bossa-nova baixinho ao violão nas noites tranquilas de alguns anos atrás, agora gritava como é de direito das mães gritar. Não por opção, mas por necessidade. É uma que não quer calçar o tênis, a outra que não para quieta para trocar a fralda, o mijo do cachorro fora do lugar e a porcaria da campainha que já tocou três vezes e ninguém que tem coragem de atender, que é tudo ela que tem que fazer sozinha nesta casa mesmo. 
E Maurílio foi perdendo a vontade de voltar para casa, que jazz não ia ter, e ele sabia. No começo perguntava se não faltava nada na dispensa, que ele podia parar um instante na padaria ou no mercado e assim se demorar mais um pouco na rua. Depois, quando até no telefone tinha ficado difícil conversar por causa do barulho das crianças, mandava uma mensagem avisando que precisava trabalhar até mais tarde. E mesmo que não tivesse trabalho, arranjava um assunto para tratar com um amigo, que melhor seria falado com uma cervejinha. E assim ia se livrando daqueles decibéis insuportáveis, tratando de dar um jeito de chegar em casa quando as crianças já dormiam, a empregada já estava no ônibus de volta para casa, falando alto com outra pessoa. Quem não mais gritava, nem mesmo falavaa essa hora, era Tereza. Não porque não tivesse assunto, que muita coisa tinha acontecido em casa durante o dia, mas porque já lhe faltava energia e às vezes mesmo vontade, já que sabia queMaurílio não tinha tanto trabalho assim na loja
Já no final de semana, não tinha para onde fugir. A barulheira estava lá desde cedo, até a noite. Não se podia mais dormir até mais tarde, que logo às seis alguém chorava, a TV era ligada bem alta no canal de desenhos, e o cachorro queria brincar. Depois do almoço eram as crianças vizinhas correndo em casa, ou um buffet infantil com barulho ensurdecedor de música ruim que não deixa ninguém conversar
Mas tudo isso, incluindo a falação da Carolina pedindo mais biscoito, o choro agudo da nenê apontando para a chupeta no chão, o latido esquizofrênico do Chico, a briga da Marlene no interfone com o porteiro, o chiado do feijãoe a Tereza pedindo socorro... tudo isso agora tinha ficadodistante, num volume estranhamente baixo, quase inaudívelque trazia consigo, ainda, um eco nostálgico de passado, uma coisa de dar medo, como um som seco num grande salão vazioEco de filme que tem cenas de passadosabe, de um tempo que já não volta mais.
- Meu Deus,  ficando surdo. Corre aqui, Tereza, me traz um cotonete urgente
Mas não houve cotonete, antibiótico auricular, otorrino ou aparelho auditivo que resolvesse.  Tudo dali para a frente,passou a ser um som baixo e distante do passado, com aquele eco de lonjura e nostalgia. Olhos no presente e ouvidos eternamente no futuro. Um tipo de benção-maldição que lhe lembrava diariamente que o tempo passa, crianças crescem, cachorros morrem, e as mulheres eventualmente se cansam. Só agora conseguia escutar de verdade a risadinha histérica da Carol, as primeiras palavras da nenê, e a voz suave de Tereza dizendo que lhe amava. Mas tudo isso foi há muito tempo atrás.




Brilho humilde


Que gentileza sem tamanho, a desse luar. Se condói todo com as luzes aqui de baixo. Especialmente com essas ridiculazinhas, as de natal, que andam por aí esses dias. Ou melhor, que piscam por aí essas noites. Medidas em watts, coitadas, dependentes de fios e da vontade humana, vivem vidas curtinhas, sem graça e de pouco sentido. Ninguém por elas suspira ou uiva. Nem sequer um verso a seu respeito. Logo queimam ou quebram. Saem de moda. Enfiadas num depósito, ficam apagadas até ano que vem ou descartadas, para nunca mais. 

De tão esclarecida e iluminada, há tanto tempo ali observando o mundo de longe e ouvindo elogios a seu respeito, tem a grandeza de disfarçar o seu brilho, seja quarto crescente, ou cheio. Só tem sossego mesmo quando mingua até sumir. Aí pode relaxar despreocupada, sem risco de magoar ninguém.

Mesmo emprestada, já que própria não é, a luz da lua não se presta a comparação com a miséria dos bulbinhos e leds aqui de baixo, por  numerosos e modernos que sejam. Se esconde então ela, elegante e discreta, aqui e ali entre as nuvens que o vento empresta, como a mulher que puxa tímida a toalha para se cobrir quando sai do banho  e percebe que tem visita em casa. Afinal, quem é dona de poder de sedução dessa monta, não precisa ficar por aí se mostrando à toa, exibindo brilho e humilhando lampadinhas, faiscas e vagalumes a troco de nada. Ela deixa para brilhar sozinha, com força e vontade, em outros cantos. Em alto mar, no sítio ou no mato, onde essas pobres luzinhas  não estão, ou se estão quase não se vê. 

Mas às vezes, mesmo com toda a sua clareza de discernimento, não enxerga saída.  Tem que contrariar a sua alma generosa e brilhar como um grito,  escandaloso e despudorado, mesmo aqui na cidade, na presença de milhões de luzinhas infelizes que a observam com dor e inveja. Não porque tenha perdido a bondade, o juizo ou a compostura. Mas porque às vezes simplesmente não se encontra toalha suficiente que lhe cubra.