...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

sábado, 10 de novembro de 2012

Será que é você?


Será que foi mesmo você que nos chamou para voltar? Será que você acabou de chegar, está para chegar, ou já chegou faz um tempinho, e resolveu que já era hora da gente vir te apanhar?  Não te conhecemos, não sabemos nada sobre você, mas algo me faz sentir que você pode estar por aí. E se for isso mesmo, meu Deus, como posso dormir essa noite? Como posso descansar sem saber onde você está, e se tem alguém cuidando de você? Aposto que a partir do minuto em que nos conhecermos, nunca mais se passará um dia sequer, em que poderemos imaginar ficar sem notícias suas... exatamente assim como estamos agora.

E preciso dizer... se for isso mesmo, só posso imaginar que você seja realmente especial. Tanto que convenceu Deus a bolar este plano perfeito, de nos destrair por uns anos, até que chegasse a sua hora de entrar nas nossas vidas. Enquanto isso, fomos nos ocupando em conhecer um pouco mais deste mundo, não só para poder lhe ensinar mais sobre ele, mas também para irmos sendo moldados para uma outra fase. Uma nova etapa em que o frio na barriga terá outras origens, que não a altura da montanha que a gente vai subir, a insegurança do primeiro dia de trabalho ou de estudo em um outro país, ou o desconforto de precisar se comunicar em uma língua que nao se domina. Frio na barriga pelo simples fato de você estar lá. E com a vantagem, devo dizer muito bem planejada, de que dificilmente teremos a sensação de que faltou aproveitar alguma coisa, antes da sua chegada.

Não.  Você foi perspicaz.  Teve paciência e nos deu tempo de sobra. Tempo sem compromisso, sem responsabilidade, um tanto diferente do que costuma acontecer normalmente. Tempo de chegar à conclusão de que estamos prontos (ou pelo menos de acharmos que estamos). Já temos, e continuamos colecionando, muitas coisas para te contar, vendo lugares que queremos te mostrar, e aprendendo coisas que queremos te ensinar. E pensar que as coisas mais importantes da vida devemos aprender só a partir da sua chegada... Torço para que seja isso mesmo. Torço para que seja você. 


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Pausa para o muro


Redigir contratos é atualmente minha principal atividade, e de vez em quando trago alguns para casa. Neste tipo de trabalho precisamos ser absolutamente precisos ao manobrar as palavras, de modo que geralmente não há espaço para escrever sobre coisas vagas como sentimentos, incluindo os de indignação. Mas como tem hora que alguns deles - os sentimentos - não podem mais ser contidos,  faço agora uma breve pausa. Uma pausa para o café, ou melhor, para o muro.

Sempre que o clima permite, vou para o trabalho de bicicleta. Assim já começo o dia com uma forma de lazer, ar fresco, exercício e a sensação de liberdade que carro nenhum – e nem trem nenhum – pode proporcionar. De bicicleta se presta mais atenção em tudo o que existe ao longo do caminho, em uma velocidade que permite observar, e interagir imediatamente com o que está à volta do caminho. É só parar e subir na calçada, para ver mais de perto aquela vitrine que mudou, ou aquele poste com um anúncio do novo filme que entrou em cartaz.  E é nesta pequena jornada diária de 20 minutos, que passo todos os dias por um lugar em que nunca na minha vida tinha imaginado passar, sequer uma vez, antes de morar aqui. A rua chamada Bernauer Straße, é um tanto especial. Ela margeia um trecho grande do que sobrou do muro de Berlim.   

Sempre que passo por lá, e vou vendo aquele muro passar à minha direita (ou esquerda, dependendo se estou indo ou voltando), não posso deixar de pensar no que aquele pedaço de concreto significa. Hoje, é um ponto turístico. Tem sempre um japonês com uma máquina fotográfica bacana, gente brincando de passar de um lado para o outro, grupos de adolescentes com professores, mais interessados na hora do lanche do que na explicação. Mas o que me deixa mesmo perplexa, é pensar em tudo que ele já significou.

Como podemos nós, seres humanos, com organismos e mentes tão complexas, capazes de pensar e aprender coisas tao sofisticadas, muitas vezes ocupados com temas tão abstratos quanto política, relacionamentos ou religião, sermos subitamente restritos ou impedidos de fazermos o que queremos ou planejamos, por uma coisa tao ridiculamente simples como uma pilha de tijolos, ou uma placa de concreto? Tem coisa mais absurda do que pensar que casais apaixonados deixaram de se casar, familiares passaram natais sem se ver, amigos deixaram de poder se reunir para beber cerveja juntos, por quase 30 anos, por causa de uma coisa tão ofensivamente simples quanto um muro? Muro é coisa que serve para dividir o quintal de sobrado geminado, um negócio que a gente manda levantar para o cachorro não fugir, ou para o vizinho não ver a gente na piscina. Muro é feito para colar cartaz. Muro não deveria ter cacife para mudar a vida de ninguém.  Como pode então este, que embora famoso, também não passa de um muro, ter mudado a vida de tanta gente, por tanto tempo, e tirado a vida de outras tantas outras que tentaram transpô-lo, protegê-lo ou estavam perto dele na hora errada?   Foram precisamente 135.

Você pode achar sem pé nem cabeça, essa minha indignação, mas acho que é a mesma coisa que sente o preso em relação à barra de ferro, quem ficou para fora de casa em relação à lingueta da fechadura, ou o ferido de tiro em relação à bala. Coisas tão ridiculamente simples, inertes, feitas pelo homem e não dotadas de qualquer inteligência, mudando o destino da gente. Nos mantendo do lado em que não queremos estar, ou até tirando a vida. Não é como um oceano Atlântico separando um exilado da sua terra, ou como uma doença complexa cuja causa ninguém conhece, ou como um grande amor que um dia acaba. Estas coisas geram igualmente muita tristeza, mas há o consolo da sua imensidão ou da nossa incapacidade em compreendê-las. Diferente da frustração que gera a impotência do homem diante de um muro. Se eu, que tenho o muro como mera paisagem no caminho para o trabalho, não consigo aceitar a idéia, imagina quem estava aqui na época, ter que se conformar com este despautério?

Conheci aqui gente que não se conformou, ou cuja família não se conformou, e que teve sorte de conseguir mudar de lado sem se machucar ou ser preso. O curioso, é que tirando as fugas espetaculares que a gente vê hoje relatadas nos documentários de TV (de balão, de tirolesa, no bagageiro do carro, por debaixo da terra, e Deus sabe mais como), quem sentiu a história na pele, não gosta de falar do assunto, e raramente conta como fugiu. Foi uma das primeiras lições que aprendi quando cheguei aqui. Se para nós ouvir um relato desses é uma curiosidade, uma ilustração mais colorida dos nossos livros de história, para estas pessoas este pedaço de concreto ainda está incrustado nas suas histórias de vida. Só de lembrar do silêncio que ouvi quando fiz a pergunta pela primeira (e única vez), voltei hoje a engolir seco. Fim da pausa, e eu acabei nem indo buscar meu café.  


Duas mulheres acenando em 26 de Agosto de 1961 para  filhos e
 netos em Berlim oriental. 
(Hulton-Getty/ddp. Fonte: LuczBoge's Blog)

terça-feira, 19 de junho de 2012

O que é que a Jezebel ainda não cheirou?

Há 2 semanas fomos incumbidos de cuidar da Jezebel. Uma cachorrinha Beagle, no auge dos seus 16 anos de idade canina. Fazendo as contas, em anos de gente, passa dos 100. A dona dela precisou viajar às pressas, é estrangeira e não conhece ninguém aqui, estava desesperada. Fomos bonzinhos em perguntar sobre a cachorra. Sobrou para a gente.
Devo dizer que conhecer a Jezebel me ensinou algumas coisas muito importantes. Ela tem tudo o que gente velha tem. Uma artrose danada nos quadris, que faz com que ela escorrege toda hora quando anda no chão liso. Nao escuta absolutamente nada. Voce pode bater palma, assobiar, deixar cair panela no chao. Não adianta, ela nao vem. Às vezes nao percebe que ainda está fazendo xixi, e sai andando por aí com os pinguinhos ainda caindo. É cheia de manias. Só dorme se for em lugar alto, no sofá ou na cama, de preferência. No chão, só a soneca da tarde, e olha lá.  Ela é magrinha, tem o pêlo curtinho para não agravar o problema de pele, fica horas sentada olhando para o nada, e vai aos poucos curvando as costas, devagarzinho, ficando cada vez mais corcunda e deixando a cabeça pescar de sono, até que deita e dorme. Fui então pensando que iríamos lá na casa dela umas duas vezes por dia, só para trocar a comida e levá-la na rua uns minutinhos, até ela se cansar. E torcer, é claro, para não acontecer o pior, pelo menos até a dona dela voltar…
Mas foi só pegarmos a coleira da Jezebel no primeiro dia de visita, para perceber que, pelo menos no que depender da vontade de viver, ela ainda tem muito chão pela frente. E por falar em chão, haja calçada, canteiro, rua... A mera visão da coleira transforma aquela senhorinha cansada em um filhote cheio de energia, afoito, estabanado, puxando a gente na marra pela escada abaixo, e derrapando ao longo do caminho em cada um dos 4 andares até o térreo.   Em questão de segundos acontece a transformação. É só ver a coleira, e ela dá um pulo acompanhado daquela arrebitadinha típica da traseira (com uma abaixadinha típica da dianteira), olhando para a gente com aquela cara de “vamos logo, o que você está esperando?”. Uma vez na rua, lá vai ela cheirando tudo freneticamente, cada poste, cada porta, cada moita, com o mesmo interesse de um cachorro novinho que sai para passear pela primeira vez. O rabinho antes baixo e sem vida, aponta imediatamente  para cima, e bate de um lado ao outro sem parar, assim que aparece outro cachorro na mesma calçada.
Fiquei pensando em como pode a Jezebel, tao vivida, ainda se empolgar com essas coisas tão simples: coleira, canteiro, calçada. Esquecer das dores e ganhar vida nova todos os dias, na hora do passeio.  Quantos postes e quantas traseiras de outros cachorros ela já não deve ter cheirado nesta vida? Se ela fosse gente, talvez a sua alegria fosse o  dia de ir ao bingo, ou de viajar com as amigas para Águas de Lindóia. Vale também. Vale o que faz você, eu e a Jezebel voltarmos a ser crianca, nem que seja por alguns instantes. E se acontecer da gente ficar triste ou desanimado de vez em quando, que seja só até o próximo poste.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Uma capa. Dois homens.

Depois de um bom tempo sem escrever, sobre o que não vou me justificar agora - e nem depois –, hoje me deparei com uma situação que pede, ou melhor, exige um texto. Deixar esta passar batido seria como achar aquele chocolate amargo suíço que a gente adora, na promoção de 3 por 1, e não pegar pelo menos um pacotinho. Ou como ver que está passando o seu filme preferido na sessão da tarde, e não assistir pelo menos até o próximo intervalo.

Em 1982 um engenheiro brasileiro de trinta e poucos anos, que fazia um cursinho picareta de inglês duas vezes por semana, foi chamado para trabalhar em Michigan, EUA. Teve que se virar por lá, aprender tudo rapidinho no trabalho, se dar conta de que o seu inglês ainda não dava conta do recado, cuidar da mulher e de dois filhos que carregou na mala. Um ano de perrengue, aprendizado, mas principalmente, de encanto. Encanto com tudo o que era diferente, com os produtos diferentes no supermercado, com o fato de ser chamado só pelo sobrenome, com a neve, com o comportamento esquisito dos vizinhos, com tudo. Foi este o mesmo ano em que uma capa de cor caqui, à la detetive, teve um destino muito diferente dos demais casacos que aguardavam pendurados na mesma arara, por um comprador que os levasse para casa. A sortuda prestou serviços durante apenas um inverno. Nada mais. Nunca mais haveria para ela, nos trópicos, o dever de aquecer alguém. Ficou guardadinha, na vida mansa, protegida e bem cuidada, durante, pasme, 30 anos. Nenhuma mancha, nem mesmo sequer um botão solto ou  um fio puxado. O homem que a capa aqueceu, em 1982, foi o meu pai.

Mas o que ninguém tinha percebido, é que a capa era encantada. Passado este longo período de hibernação, um fenômeno incrível se manifestou. Do fundo do armário,  o encanto encontrou uma brecha - que até então nem as traças tinham achado – passou por entre as dobras do embrulho que protegia a roupa, e fez com que alguém, que passava ali pelo quarto naquele momento, subitamente se lembrasse do item aposentado.  Sem mais nem menos, a capa foi mandada para a tinturaria, lavada, passada, e colocada de volta na ativa. Desta vez, enviada para uma nova missão, em outro país gelado.

Hoje à noite nevou aqui em Berlin. Uma noite de quinta-feira geladinha, perfeita para um programinha cultural a dois. Combinamos de ir à ópera depois do trabalho, nos encontraríamos na saída do metrô. Foi quando vi chegando um moço alinhado, coberto por aquele tecido caqui. Exatamente como primeiro proprietário da capa, ele tem hoje seus trinta e tantos anos, aprende uma nova língua, enfrenta e se encanta com as diferenças de um novo país, e cuida de mim. A mesma capa, com um intervalo de 30 anos, aquecendo os dois homens da minha vida. Vai dizer que a vida, em si, não é cheia de encantos?