Não, não se apresse em julgar pelo título. Este não é desabafo mal-educado, nem uma crônica desaforada sobre os indelicados nomes de animais que nos vêm à cabeça quando topamos com maus motoristas no trânsito de São Paulo - o que, aliás, de fato acontece com freqüência por vezes acima do tolerável.
Não. A idéia aqui é menos protesto e mais poesia. Sim, se prestarmos atenção, podemos observar algumas sutilezas do mundo animal enquanto andamos por aí nesse trânsito maluco, ou, melhor dizendo, enquanto NÃO andamos por aí nesse trânsito maluco.
Outro dia, parada em um congestionamento em plena na faixa da esquerda da marginal Pinheiros, me dei conta da presença de uma garça, branquinha, alta, esbelta, cutucando com o bico comprido aquele lodo imundo que se acumula na margem do rio (se é que aquele caldo ainda pode ser chamado de rio). Parada ali no trânsito, tive tempo de pensar com os botões do meu painel. Como é que um animal assim lindo, selvagem e, ainda por cima, com asas, preferia ficar ali, pescando não sei o quê naquela imundice (aliás, prefiro nem pensar o que ela poderia estar pescando). Foi quando, num daqueles momentos de insanidade passageira que temos no carro no horário de pico (ou será que sou só eu?), comecei a falar sozinha em voz alta:
- Vai... xô, xô! Some daqui, sua boba! Você tem asas! Por que é que você não voa para longe e se muda para um rio limpinho, bonito? Qualquer coisa é melhor do que esse lugar horrível em que você está...
Foi quando a insanidade do horário de pico deu lugar a uma súbita onda de sensatez, e me dei conta de que eu, como a garça, também estava ali, parada no meio de um congestionamento há mais de uma hora, como de costume, respirando aquele aquele ar fedido, ao lado de um rio morto. E eu, por que será que eu não vôo desta cidade?
Noutro congestionamento, alguns dias depois, foi a vez de um inseto. A tarde abafada de verão não combinava com o mar de carros e ônibus à minha frente, e, muito menos, com o meu ar condicionado quebrado (há alguns meses, diga-se). O desconforto do abafamento rapidamente superou o meu medo de abrir os vidros, até mesmo naquele cenário do elo perdido que é o Largo do Socorro. Socorro! E como toda desgraça tem um toque final, em poucos minutos uma abelhinha despreocupada resolveu juntar-se a mim. Era só o que faltava, pensei, uma ferroada na testa no meio deste trânsito, com este calor infernal. Mas a simpática visitante só deu uma voltinha dentro do carro, e rapidamente saiu pela outra janela. Quase que pude ouvi-la falando:
- Olha, só. Você aí tão grande, de carro e tudo. Quer apostar que eu, com essas pequenas asinhas, chego bem antes que você naquele semáforo ali na frente?
E se quisesse tinha chegado mesmo. Alías o semáforo ficou verde, vermelho,verde de novo, e nada do trânsito andar. Droga de abelha. Sumiu rapidamente, provavelmente rindo de mim. Mas também, foi só passar um menino vendendo bala e eu tratei logo de pegar uma sabor mel. Pronto, estava vingada. A espertinha tinha trabalhado de graça para mim e nem sabia. Quem tinha levado a melhor agora, heim, heim?
Por fim, hoje vindo do trabalho, prestei atenção redobrada no exato cruzamento onde outro dia tomei uma multa por passar no sinal vermelho (juro que eu achei que o marronzinho não ia ter coragem de me multar. O farol fechava tão rápido naquela tarde e o trânsito era tanto... agente da lei sem coração!).
Bom, enfim, hoje fui cuidadosa ao extremo, parei logo no amarelo e olhei para o guarda, buscando aprovação. E justo hoje, para minha surpresa, o marronzinho de plantão estava pouco se lixando para nós, motoristas desatentos reformados. Ele estava de olho em um vira-lata super simpático, daqueles malhadinhos com uma orelha torta e a outra não, língua de fora, sentadinho bem no início da faixa de pedestres, como se aguardasse mesmo a sua vez de atravessar.
Bastou o sinal fechar e o marronzinho começou a acenar com as duas mãos, bater os pés no chão e dar uns assobios engraçados, tudo ao mesmo tempo, para fazer o cachorro se levantar e ir de uma vez para o outro lado, a salvo do trânsito selvagem. Parecia uma performance daqueles acrobatas de cruzamento, só que sem a mesma elasticidade, e sem pedido de gorjeta no final. E quanto mais se esforçava o marronzinho, mais o bichinho abanava o rabo e dava voltas em torno das suas pernas sem a menor vontade de terminar de atravessar a rua. Nos últimos segundos do farol fechado o cão finalmente cruzou a faixa, de livre e espontânea vontade, deixando o semblante do marronzinho aliviado. Mas pude ver, pelo espelho retrovisor, o vira-lata abanando o rabinho, lá do outro lado da rua, pronto para voltar e brincar mais um pouco com o moço bonzinho de roupa marrom. Foi uma cena curiosa. Fez até a minha raiva do marronzinho passar. Afinal, ele também parava de vez em quando para dar uma olhada nas sutilezas em volta deste nosso trânsito não-domesticado.
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