...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

No centro

Como diz o Tavares, meu querido amigo, tem momentos em que a gente está “no centro”. A  versão completa da expressão é “no centro de fortes emoções”,  e se aplica ao dia antes do vestibular, aos últimos minutos antes da largada, ou à espera pela notícia do médico ao fim da cirurgia. Existem várias categorias de situações que colocam a gente “no centro”. As que eu andei passando, nas últimas semanas, não são, definitivamente, das mais graves. Muito pelo contrário, existem na vida circunstâncias muitíssimo mais sérias do que qualquer coisa relacionada a trabalho. Mas seja como for, estar “no centro” é estar “no centro”, e a gente passa apertado de qualquer jeito.

Já me disseram que somos avaliados todos os dias, em tudo o que fazemos, sem percebermos. E isso é bem verdade. Mas quando você sabe que o chefe do seu chefe está ali só para observar a sua reação, numa simulação cuidadosamente elaborada para lhe deixar sem saber o que fazer, aí não tem como estar em outro lugar que não “no centro”.  Ou quando colocam a gente para falar durante 3 horas, sobre um assunto que a gente acabou de aprender, para um bando de gente que é formada no tema. Aí também não tem expressão que melhor se encaixe.

Mas o que achei interessante, sobre estas recentes experiências apavorantes, foi parar para pensar que outras coisas, antes também assustadoras, um dia simplesmente deixaram de ser. Meu pai teve a feliz idéia de me enviar um e-mail, na noite anterior a um desses hecatombes psicológicos, com uma foto da competição de natação em que eu nadei na honrosa categoria “sapinho”. Não me lembro da sensação, pois tinha só quatro anos, mas aposto que naquele dia o nervoso era proporcionalmente o mesmo, considerando a minha nanica estatura na época. O que o meu pai quis me dizer, e o que eu acho que entendi, é que os desafios crescem junto com a gente, e que se um dia a gente foi capaz de nadar bem o “sapinho”, por que hoje não seríamos capazes de encarar um ou outro leão por aí? Então foi só começar a pensar sobre o que veio depois da competição de natação, e ir achando outros pequenos grandes desafios, que foram crescendo, crescendo e culminaram, agora, com essa reunião (de mentirinha) onde eu tive que falar para o chefe (de verdade) que ele estava completamente errado e que por favor deixasse eu acabar de falar antes de emitir a sua opinião. É bastante suor para uma testa só...

Mas acho que perceber este fato foi muito mais importante do que o resultado de qualquer desses recentes apertos em si. Talvez assim seja possível enxergar os próximos de um jeito diferente, ou pelo menos tentar continuar crescendo (ainda que não em estatura), para acompanhar o passo dos desafios que de tempos em tempos teimam em colocar a gente “no centro”.    

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

1, 2, 3 Pim

Meu celular tocou, uma vozinha aguda começou a falar sem parar, repetindo ininterruptamente as palavras que depois de uns 2 ou 3 minutos eu consegui conectar uma a outra, e finalmente entender a mensagem:  ela estava perdida, parada na frente do metrô, e queria que eu fosse busca-la lá. Era a Pim, a senhora tailandesa que veio aqui em casa para dar um jeito na minha coluna, que um dia desses resolveu travar e me deixar com a silhueta do corcunda de Notre  Damme.

A Pim mora na Alemanha há 26 anos, e até hoje, se comunica aos trancos e barrancos, com o seu engraçado “Tailemão”. Uma senhorinha simples, baixinha, que ri e fala sem parar, como se a gente estivesse entendendo tudo. Ela se perdeu porque não entendeu a numeração dos prédios aqui na rua. Morre de medo de elevador, e me fez prometer que desceria com ela na hora de ir embora. Mas que ninguém se deixe enganar por aquela aparência inofensiva, que inspira quase compaixão. Não sei de onde aquelas mãozinhas tiram tanta força. Onde mais doí, é onde ela mais aperta. Sem dó nem piedade. Bastou uma sessão para aprender que se doer muito, o negócio é não dizer nada. Se reclamar, é aí que ela se empenha ainda mais, e adquire quase que superpoderes. Um trator, um rolo compressor, ou, no caso, um tsunami, como preferir.

No dia seguinte, acordei como se tivesse dormido dentro da máquina de lavar roupa, no modo centrifugar. Doía absolutamente tudo, muito mais do que antes dela passar por aqui.  Mas conforme os dias foram passando, percebi que os músculos estavam doloridos, mas tinham de fato voltado para o lugar. Afinal, ela sabia o que estava fazendo.

Mas o que me impressionou mais sobre a Pim, não foi a sua técnica terapêutica. Conforme íamos tentando nos entender, com o nosso alemão igualmente sofrível, ela me falou uma das coisas mais simples, e, ao mesmo tempo, mais sábias que eu já ouvi. Ela me disse que com todas as dificuldades que já enfrentou na vida, se considera realmente feliz, pois sabe que faz bem para as pessoas. Acho que ela poderia até ter dito isso em Tailandês, e eu iria entender. A expressão no seu rosto era como uma legenda, numa língua universal. E existe de fato maior felicidade, do que ter esta sensação diariamente, com o trabalho que se escolhe para ganhar a vida? Imagino que seja algo como aquela alegria que a gente sente ao dar um presente, daqueles muito bem escolhidos, para quem a gente gosta, só que multiplicada por 8 horas por dia, 5 vezes por semana. Fazer bem para os outros, como profissão. Caramba, quanta sabedoria escondida atrás de uma figura tão simples. Feliz da vida, lá foi a Pim embora, mas só depois, é claro, que eu desci com ela no elevador.  


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Trezentos e sessenta e cinco

Um ano é bastante coisa. Se pensarmos em quantas vezes saímos de casa de manhã para o trabalho, quantas vezes esperamos o ônibus chegar, o semáforo abrir, a água ferver. Quantas vezes fomos ao mercado, fizemos o jantar, recebemos visita, arrumamos a bagunça, bagunçamos tudo de novo...  E se imaginarmos tudo isso como um filme acelerado, em que as pessoas parecem formiguinhas rápidas correndo de lá para cá, aí é que a gente tem uma idéia de quanta coisa cabe em um ano.

Quando fomos buscar os meus pais no aeroporto, no início do mês, me dei conta de que há um ano não via o rosto deles. Nos falamos praticamente todos os dias, é fato. Até com maior frequência do que quando, ao invés de um Atlântico, havia apenas a Avenida dos Bandeirantes e um trechinho da Marginal Pinheiros entre nós. Mas ver, ver mesmo, foram quase os trezentos e sessenta e cinco completos.  Aquela imagem  “vai-não-vai” do Skype não serve para nada. Aliás, acho que até atrapalha. É como um diálogo sem ritmo, daqueles filmes mal dublados.

 Mas o curioso é que, assim que os encontrei no portão do desembarque, logo me assombrei com o fato de que parecia que os tinha visto no dia anterior.  Não senti qualquer distância, qualquer tempo perdido, qualquer estranhamento. Acho que quando a gente ama muito alguém,  tem algo que garante a proximidade, a despeito de estarmos sentados lado a lado no sofá da sala, ou a milhares de quilómetros de distância.  O fato de termos nos mantido rigorosamente a par do que acontecia nas nossas respectivas vidas, e de nos conhecermos tão bem a ponto de sabermos se o dia foi bom ou não, pelo tom da voz ao telefone, parece quase ter suprido a necessidade da proximidade física. É como se esses “laços de família”, como se diz por aí, fossem de fato estreitos, mas ao mesmo tempo incrivelmente elásticos e compridos.
Não há nada como um abraço bem apertado, é bem verdade. Eu mesma daria tudo para receber um ou dois daqueles do portão de desembarque, todos os dias, para começar bem a manhã ou ao voltar para casa, depois de um dia difícil no trabalho!  Mas o que eu posso dizer, agora por experiência própria, é que há muito, mas muito mais do que o contato físico de um bom abraço, nos relacionamentos humanos sinceros. E não pode haver amor mais sincero do que aquele de pais capazes de renunciar a proximidade física, o convívio, para permitir que busquemos o que procuramos, onde quer que seja.  Para esse tipo de amor, um ano é fichinha.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Filarmônica com ovo

Na segunda tentativa, conseguimos assistir ao concerto ao ar livre da Orquestra Filarmônica de Berlin. Ele acontece todos os anos, no verao, em uma arena construída no meio da mata, quase nos limites da cidade. Vimos este concerto uma vez na televisão no Brasil, em um canal a cabo, e ficamos encantados com o lugar e com a música. Assim que soube da data do concerto deste ano, corri comprar os ingressos, e esperamos quase dois meses pela grande noite, que ao invés de grande, foi molhada. Chovia tão forte, que os músicos não tiveram coragem de arriscar estragar seus instrumentos com a água que o vento soprava para dentro do palco, ainda que coberto. Concerto cancelado, voltamos para casa ensopados, e frustrados.
O concerto foi transferido de julho para agosto, e finalmente aconteceu nesta última terça-feira. Desta vez uma noite sem chuva, com uma brisa morna, ideal para qualquer atividade ao ar livre. E lá estava mais uma vez aquela multidão, de 20 mil pessoas, que, como nós, havia aguardado com resignação a nova tentativa.
Sim, 20 mil pessoas. E é sobre elas que eu preciso falar. Nunca pensei que uma quantidade tão imensa de gente, reunida ao ar livre, fosse capaz de produzir aquele silêncio absoluto. No momento em que o maestro pegou a batuta e se virou para a orquestra, não se ouvia absolutamente nada, a não ser um ou outro passarinho mais desavisado, ali daquela mata, que não se deu conta que era dia de visita, e das importantes. Um respeito impressionante. Mesmo onde estávamos sentados, em um dos setores mais distantes do palco, ninguém abria o bico, como se estivéssemos todos dentro de uma pequeníssima sala de concertos, em uma apresentação para uma seleta platéia.
A música foi excelente, o cenário, de tirar o fôlego. Mas preciso confessar que passei grande parte do tempo olhando ao meu redor, e não em direção ao palco. Não pude deixar de reparar nos pequenos detalhes, que mostram claramente a capacidade que os alemães têm, de harmonizar tão bem o erudito com o popular, o simples, o essencial. Não havia sequer um expectador sem uma mochila ou cestinha a tiracolo, com uma merendinha para comer ali, durante o concerto. Não pense você que me refiro a um vinhozinho com queijo, para combinar com o requintado evento. Não, longe disso. Um mar de "tupperwares" coloridos, com tudo o que você possa imaginar, de linguiça defumada a ovo cozido, passando por tirinhas de pepino e batata assada. Sim, uma farofa daquelas, das boas (obviamente sem a farofa em espécie, artigo desconhecido por aqui). O ponto é que a autenticidade do alemão não deixa espaço para falso recato. Nunca ouvi aqui o equivalente da expressão "será que nao vai pegar mal?". Se o cidadão come banana em casa, porque é que não pode descascar a sua fruta tropical ali, enquanto escuta a Filarmônica de Berlin? Nada mais autêntico, para provar que cultura nao é sinônimo de frescura, nem de aparência de status.
A disposicão dos alemães é outra coisa que não posso deixar de notar. E ela estava absolutamente evidente ali, naquela amostra gigante de pessoas: idosos aos montes (sozinhos, em grupos ou casais), famílias completas, gente jovem que acabara de sair do trabalho: todo mundo chegando de transporte público, a despeito da idade ou da classe social. Nada de manobrista, flanelinha ou "vallet". As pessoas iam chegando, uma a uma, com as suas almofadinhas, de espuma ou infláveis, em baixo do braço, já cientes dos "confortáveis" bancos de madeira que as esperavam lá (aliás, boa lição para nós novatos, para o próximo ano).

Vinte mil pessoas, cada uma com um perfil, uma história própria, e uma comida diferente no seu "tupperware". Uma multidão tão heterogênia, subitamente capaz de adotar um comportamento ordenado, harmônico e respeitoso, digno da boa música e da beleza daquele lugar. E se tiver um salzinho, por que não um bom ovinho cozido para acompanhar?




quinta-feira, 21 de julho de 2011

Conservar a qualquer temperatura

Sempre sonhei em um dia ver um campo de girassóis. O girassol é a minha flor preferida. Acho uma flor de presença, parruda, pesada, e ao mesmo tempo, tão delicada, tão alegre, tão amarela. Não tem como olhar para um girassol e ficar triste. Acho que é por isso que não se usa girassóis quando morre alguém.  Mas também não se usa em casamentos. Vai ver que é porque acham uma flor pouco nobre, comum, afinal, o girassol que não vai para a floricultura, acaba virando comida de papagaio ou óleo para fritar pastel.

O fato é que o girassol sempre me encantou, e sempre foi a flor que ganhei nos aniversários de namoro, casamento... No começo era uma haste para cada ano, até que o buquê começou a ficar muito pesado, não só para o bolso, mas também para o braço (afinal, é uma flor de presença, parruda, pesada).

Muitas vezes vi aquelas fotos de revistas de viagem, com os campos de girassóis na toscana, no sul da frança, e até no Rio Grande do Sul... Nas viagens que fizemos por aí, nunca calhou a época, o lugar, a florada... Um dia pendurei uma dessas fotos na porta da minha geladeira, e, como tudo o que penduramos na geladeira, ficou lá por anos e anos, puxando de vez em quando o canto dos nossos olhos, entre uma abridinha para pegar um tomate ou o litro de leite. Não sei onde foi parar essa foto na nossa mudança. Tenho a impressão de que ela ficou lá, grudada na geladeira, que agora já está na casa de outra pessoa. Espero que ela também passe os olhos pelos girassóis da foto de tempos em tempos, e fique imaginando, como eu, como seria andar no meio deles um dia.


Pois foi na semana passada que a figura deixou de ser uma foto na geladeira, e passou a ser uma memória com muitas outras dimensões, na minha cabeça. Em 40 minutos de carro, saindo aqui de Berlin, chegamos ao ponto que indicava a narradora sisuda do nosso GPS (que agora só fala Alemao). Achamos umas coordenadas depois de uma pesquisa na internet, onde vimos fotos dos campos plantados aqui na região no ano passado. Escrevi um e-mail para o fotógrafo, e ele me respondeu que os campos mudam de lugar de ano para ano, e que era difícil dizer. Puxa vida, é verão, estamos na Europa, tem que ter um pelo menos um canteirinho em algum lugar aqui por perto. E tinha!

Nunca vi coisa tão linda. Foi mais do que apenas a imagem. Foi me dar conta que elas têm quase a minha altura, foi ouvir o barulho das abelhas que voavam para todos os lados, bêbadas com aquela abundância de pólem e o perfume que exalava daqueles miolões amarelos. Foi o calor do dia. O contraste do amarelo com o azul do céu. O sol forte, que não deixava aqueles bolachões amarelos olharem para o outro lado, hipnotizados que estavam pela luz, como a plateia de um bom show. Hipnotisada fiquei eu também, com a oportunidade de contemplar este capricho, aquelas incontáveis hastes, com as quais seria possível presentear alguém por milhares, milhões de anos de namoro. Taí uma lembrança que vai durar para sempre. Não precisa nem conservar na geladeira.





segunda-feira, 20 de junho de 2011

Milagre em Curso

Faço tudo para evitar o pensamento que insiste em vir a minha mente, enquanto escuto com atenção o vizinho explicar que mora aqui mas trabalha em Rostock, que é professor universitário, que sua mulher vem da Suécia, que gosta de Berlin por causa disso e daquilo, que ainda bem que a agora a chuva parou, que gostou muito da América Latina quando esteve lá há quatro anos, que achou uma ótima ideia essa festinha do condomínio para a gente se conhecer melhor, que agora vai experimentar a sobremesa, etc., etc.

Não posso pensar, não posso pensar, não posso pensar... pronto pensei: “será mesmo verdade que estou entendo tudo o que ele está falando? Não pode ser, meu Deus... isso é alemão”!

E é aí, precisamente, quando sucumbo a este pensamento, que a vaca vai para o brejo, ou iria, se tivesse um brejo por aqui. Me desconcentro, perco um montão de frases, uma atrás da outra. Preciso respirar fundo e pedir gentilmente para que a pessoa repita o que acabou de dizer, se possível um pouquinho mais de vagar (“langsam, bitte!”).

A gente sempre escuta dizer que é capaz de aprender qualquer coisa, que é só uma questão de tempo e oportunidade. Tenho tido na minha vida, experiências um tanto ilustrativas neste sentido, embora tenda a esquecê-las nos momentos de dificuldade e frustração. Oportunidade mais cinco anos de estudo pode resultar, por exemplo, em um dentista ou um advogado. Dez anos, e muita oportunidade, podem até resultar nos dois.

Retrospectivas à parte, o certo é que alguma coisa está acontecendo bem agora aqui dentro da minha cabeça. É algo misterioso, místico, um milagre. Ainda tem muita coisa que não entendo, mas a quantidade de informação que consigo depreender de uma conversa, como aquela com o meu vizinho, é espantosamente maior do que há alguns poucos meses atrás. Já não posso dizer que alemão para mim é grego. É difícil pacas, mas é alemão.

Se isso não for um fato sobrenatural, então não sei o que pode ser. Quem foi que fez nossa cabeça assim tão maleável, a ponto de ser capaz de absorver, ainda que aos poucos, algo tão espesso e viscoso como essa língua? Quem foi que projetou nossos ouvidos de uma forma que, depois de certo tempo, aprendem naturalmente a reconhecer o que passaram trinta e tantos anos sem nunca ouvir? Só espero que este mesmo projetista (que eu sei muito bem quem é, e você também) dê ainda um jeito na minha garganta. Esse modelo brasileiro de “campainha” requer uma adaptação, para que um dia eu consiga pronunciar o “R” daqui, sem ninguém fazer careta e pedir para eu repetir a palavra três vezes. Tá bom, às vezes quatro.





domingo, 22 de maio de 2011

Primavera em Berlin

Não foi à toa que não escrevi nada no mês de abril. No mês de abril todo mundo tem mais o que fazer em Berlin. As árvores, por exemplo, têm que abandonar o seu aspecto seco e cascudo dos últimos 5 meses, preparar os primeiros brotinhos e explodir em folhas enormes e verdíssimas, tudo em um intervalo de 4 semanas. As flores tem que ressurgir subitamente dos bulbos há muito tempo enterrados e dos arbustinhos que se fingiram de mortos durante todo o inverno. E o fazem em cores escandalosas que eu nem sabia que existiam aqui, onde meus olhos se acostumaram com tanto cinza.

Tudo na primavera é exagerado. É como quando a gente emerge na superfície da água, depois de ficar um tempão sem respirar. Aquela tomada de fôlego profunda, quase que em desespero. De um dia para o outro, todo mundo foi para a rua. No primeiro final de semana em que a temperatura passou dos 15 graus, pensei que estava acontecendo alguma manifestação no nosso bairro. Não sabia que morava tanta gente aqui. Onde estava todo mundo, esse tempo todo?

As saias estão subitamente muito curtas. Nunca vi tanta perna de fora, pelo menos fora da praia. Para fora também estão todas as mesinhas dos restaurantes, cujo interior, ora aconchegante e quentinho, agora é escuro e muito menos atrativo do que mormaço lá de fora. Os passarinhos cantam muito, e muito alto (alguns um pouquinho cedo demais). O sol não quer ir embora antes das 9 da noite. O por do sol é tão longo, que a gente desiste de assistir. As árvores estão tão carregadas, que soltam no vento uma pluminha branca feito algodão, dançando para lá e para cá, aos milhares, como se a primavera quisesse oferecer de tudo, até um pouquinho neve, mas ao seu próprio estilo.

Da nossa sacada pudemos observar a mudança também na casa das pessoas. Janelas finalmente abertas, arrumação nos jardins e floreiras, criançada e suas toncas para fora. Na feira, além de todas aquelas frutinhas vermelhas que a gente não sabe o nome, é tempo de aspargo. Esse legume está para o alemão assim como o carnaval está para o carioca. É uma febre, uma unanimidade, quase que sagrado. Sendo estrangeiros, então, não passamos um dia sem que um alemão nos pergunte, com aquela expressão de expectativa e orgulho: “e então, o que estão achando dos aspargos”? Todo mundo tem uma opinião sobre qual é o melhor, o mais fresco, e a melhor maneira de preparar. E como o carnaval, ele só dá nessa época, por isso, quanto mais você aproveitar, melhor, por que depois... só no ano que vem.

Parece que a gente se mudou de cidade, sem sair de Berlin. Tudo está diferente de quando chegamos aqui. Até a gente está diferente. Nunca valorizei tanto uma brisa morna no rosto, um pé descalço na grama, uma camiseta de manga curta. Acho que as estações fazem isso com a gente. Ensinam desfrutar aquilo de que fomos temporariamente privados, ou que sabemos que não estará aqui para sempre. Tudo muda, para depois mudar novamente. Se a natureza faz assim, quem somos nós para achar que deve ser diferente? Estou gostando de contemplar isso tudo pela primeira vez, aqui da nossa sacada, que só recentemente passamos a frequentar.


sexta-feira, 18 de março de 2011

Poucas palavras

Conheço um advogado que trabalha em Londres, há dois anos, na condicao de expatriado, assim como eu aqui. Agora chegou o momento de ele voltar para o seu país de origem. O Japão.

Engraçada esta situação, por que nós passamos os últimos 5 meses brigando, cada um defendendo a companhia para a qual trabalha. Conversamos sempre em uma língua que nao é a minha nem a dele, morando ambos em países em que somos apenas visitantes. Brigamos por um dinheiro que não pertence a nenhum de nós dois. Diferenças e semelhanças que acabaram por criar um laço de respeito, e por que não dizer, de solidariedade, que hoje se materializou em algumas poucas palavras, digitadas.

Ele me escreveu um e-mail curto, em um tom educado e respeitoso, que acho que todo bom Japonês conserva, nao importa onde more. Avisou que os próximos contratos deverão ser enviados para o seu sucessor, fulano de tal, que era grato pela minha paciência durante as intermináveis negociações (que ainda não terminaram), e que havia sido um grande prazer trabalharmos juntos. Me desejou, ainda, um tempo de boas vivências aqui em Berlim. Pude sentir a mistura de sentimentos nas suas palavras, quando ele disse que, quanto a ele, havia chegado a hora de voltar para o Japão.

Fiquei imaginando como se sente alguém que volta para casa em um momento como esse, em que o seu país vive uma triste mistura de luto e medo. Ouço tanta gente falando sobre como os japoneses são conformados, calmos e disciplinados. Talvez seja culpa dos olhos estreitinhos, que não deixam transparecer todos os sentimentos... Não pude ver os olhos do meu colega hoje, mas imagino que eles devem estar cheios de medo e angústia, querendo passar por aquele pequeno espaco entre a pálpebra de cima e a de baixo. Pelo menos, foi isso o que eu pude enxergar entre as palavras ali digitadas.

Respondi a ele dizendo que mal consigo imaginar o momento difícil que o país dele está passando, e desejei que ele encontre a sua família e amigos em seguranca. Acho que é a primeira vez que mando um e-mail para ele, nestes 5 meses, e torço para não receber uma resposta. Afinal, não há o que falar. Aí acertam os Japoneses, na minha opinião, que ouvem mais e falam menos.

Tudo isso me fez pensar sobre o Brasil, e como me sentiria em voltar e não encontrá-lo como o deixei. As pessoas, o ambiente, a vida. Quando vamos para longe, temos tantas distrações, novidades, desafios, que nem paramos para pensar como o que temos lá em casa também é bom, também é bonito, também funciona... ao menos para a gente.

Hoje sinto pelo meu colega, e pelo que ele vai encontrar ao sair do aeroporto. Vivemos em um mundo com tantas oportunidades e possibilidades. Mas há uma que sempre queremos conservar, não importa o que aconteça: a possibilidade de voltarmos para casa, quando quisermos, e a encontrarmos lá.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Abrindo o bico

Bastou a neve aqui dar uma derretida, e já se pode ouvir, de volta, o canto dos passarinhos. Isso outro dia me fez pensar na vida do passarinho. Ele tem basicamente duas necessidades, pelo menos até onde eu sei. Comer e fazer outros passarinhos. A primeira já é uma tarefa e tanto, pelo menos num frio como esse. Coitado. Não sei que tipo de minhoca sobrevive nesse chão gelado. E nas árvores, já não tem folha alguma há muito tempo, quanto mais frutinhas pra se beliscar. Então a simples tarefa de arranjar o que comer já deve ser, por si só, um desafio. Quanto a fazer outros passarinhos, não sei detalhes sobre a reprodução das aves, mas imagino que os instintos devem tomar conta da maior parte. Depois, a tarefa se resume, novamente, a encontrar o que comer, agora para si próprio e para a cria. De qualquer forma, sei que escrevo aqui correndo o risco de subestimar a complexidade da vida do passarinho, cometendo uma enorme injustiça. Mas ainda assim, vou arriscar.

Imagine como seria viver tendo apenas um ou dois objetivos bem definidos a cumprir, todos os dias. Não as múltiplas e complexas tarefas e preocupações que a gente tem, ou acaba dando um jeito de arrumar. Conte, nem que seja bem por cima, o número de assuntos com os quais você lida todos os dias. A começar pelos seus dois ou três principais pepinos no trabalho, passando pelas coisas pequenas do dia-a-dia como aquela consulta que você esqueceu de marcar, o sabão em pó que acabou, o telefonema que não deu tempo de retornar, os horários aos quais nos obrigamos e, ainda, pelas coisas que ocupam as nossas mentes enquanto tentamos fazer tudo isso: medos, inseguranças, saudades, frustrações, ansiedades, incertezas...

É coisa pra chuchu. Sorte do passarinho, sentado lá fora. É verdade que o galho que ele escolheu está balançando um bocado, e deve estar um frio daqueles. Mas acredito que ele também não sente muita coisa, além de frio e fome. Já gente... Gente tem tantos sentimentos, que às vezes faltam palavras para descrevê-los. Eu mesma tenho alguns que nunca vi definidos, tais como deveriam, no dicionário. Já reparou a facilidade com que eles se sobrepõem, se acumulam e se instalam no nosso peito, principalmente nos dias em que resolvemos dar uma paradinha para pensar na vida? São tantos e às vezes tão grandes que não caberiam, definitivamente, naquele peitinho aveludado, por mais estufado que seja.

Acredito que essa capacidade que a gente tem de fazer tantas coisas, pensar sobre elas, senti-las, guarda-las e lembra-las, é o que nos faz gente. Me sinto abençoada por dispor de todas as ferramentas para lidar com estas complexidades da vida, embora não agradeça tanto e tão frequentemente quanto deveria. O fato é que também é um desafio, saber até onde devemos ser gente, e a partir de onde devemos ser um pouco passarinho. Manter simples o que pode ser simples, focar no que é realmente importante, e cantar, até mesmo antes de o inverno acabar. Esse aí da janela acabou de voar. Quando ele voltar, vou ver se peço umas dicas.

Foto: Carlos Pompeu


terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Uma questão de estatura

Alguma vez você já se sentiu pequenininho? Não vale pensar em quando você era criança, mesmo porque, embora pequeno em estatura aposto que você se sentia grande o suficiente para subir naquele muro, ir sozinho naquele lugar, ou chegar tarde daquela festa. Quero dizer pequenininho em um sentido não tão óbvio, pequeninho por dentro, com pouco a oferecer, ou muito para aprender, como queira.

O engraçado, é que, às vezes, tanta gente nos vê grandes, enquanto nós sabemos da nossa pequeneza. Só a gente tem consciência do que nos falta ainda saber. E sabemos que talvez haja ainda mais.

É uma sensação que experimento todos os dias, em uma fase em que quase tudo é novidade. Não falo apenas do trabalho ou da língua. O contexto é outro, as pessoas nem sempre reagem da forma como esperamos, até o humor é diferente. É uma experiência única, aprender coisas tão básicas de novo. O que tem graça aqui, às vezes não tem a menor graça aí. Uma cara franzida, ou a ausência de qualquer expressão facial, pode não significar a mesma coisa que significaria aí. O tom de voz é algo que sempre me engana. Ninguém está bravo. É assim que se fala aqui. Às vezes depois de uma voz áspera, vem um melódico “tchuuus”, tão gentil que a gente até olha para trás para ver se é a mesma pessoa quem está dando tchau.

É claro que você não pode esperar entender completamente o contexto, em tão pouco tempo. Gosto de pensar que, enquanto eu assistia o Sítio do Pica-Pau Amarelo, a moça que me atendeu na loja de móveis assistia um programa completamente diferente, quando era criança. Ela nunca teve medo da Cuca, e eu nem sei o nome do bicho de quem ela tinha medo. Se soubesse, provavelmente não conseguiria pronunciar. Temos referências diferentes, não devemos necessariamente reagir da mesma forma ou rir das mesmas piadas. Como eu sou a minoria aqui, eu é que me sinto pequenininha, quando não entendo por que ela se recusou a me falar o preço do sofá às 8:57, quando o horário de atendimento começava às 9:00. Ou quando eu não encontro o leite condensado no mercado, por que ele fica junto ao café, e não junto aos ingredientes para bolos e doces (???). Ou quando a secretária do médico não me avisa que ele não atende pelo convênio, até que eu chegue lá, no dia da consulta. Some-se a isso tudo o fato que, ao aprender uma nova língua, raramente conseguimos expressar exatamente o que gostaríamos, o que dá ainda mais margem para confusão.

A sensação de que voltamos a ser pequenos aparece também quando passamos a precisar de ajuda para aquilo que antes fazíamos sozinhos, com os pés nas costas. Todo mundo que já precisou de ajuda para tomar banho, depois de quebrar o braço ou fazer uma cirurgia, por exemplo, conhece a sensação. É um aprendizado, conseguir se livrar do orgulho e da falsa sensação de autossuficiência. Até tentei ligar sozinha para o setor de achados e perdidos da companhia de metrô (sim, sim, esqueci minha bolsa no trem, já sei preciso prestar mais atenção nas coisas). Suei mais do que se tivesse feito 30 minutos de esteira. Valeu o treino, mas tudo ficou mais fácil quando uma boa alma germânica que passava por ali resolveu me ajudar com a comunicação.

Enfim, daqui de baixo da minha pequeneza de hoje, sinto que há tanto por aprender. Às vezes dá até uma impressão de que não vai dar pé, que a piscina é muito funda para a minha estatura. Já aprendi a nadar uma vez, acho que é possível aprender a nadar por aqui também. Por enquanto, é paciência de gente grande, e mão na bordinha...