...palavras são o que teimamos em usar para vesti-las.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O dia em que neva


A neve em uma cidade agitada como Berlin é vista por muita gente como um incômodo. Fica difícil andar na rua, atravessar a rua, reconhecer onde começa a rua. O trem atrasa, o carro derrapa, a gente escorrega. Depois de tanto vai e vem, o dia inteiro, a neve vai deixando de ser branca, e vai ficando parecida com uma lama, uma lama gelada.

Falando assim, até pareço um alemão. Alemão tem fama de reclamar de tudo. Nunca vi um Alemão dizer que está ótimo. Quando muito, está tudo bem. Mas, pasme você, apesar de toda esta confusão, até os Alemães se rendem ao encanto do dia em que neva.

O dia em que neva é aquele dia em que a gente acorda, olha lá fora, e vê tudo branco, intocado. A neve ainda não causou nenhuma confusão, ela apenas caiu, enquanto a gente dormia. Diferentemente dos dias que se seguem, o dia em que neva é um dos mais calmos. Ele é silencioso, porque a neve que cobre tudo - as calçadas, as ruas, os telhados e os carros - abafa o som da cidade. Tudo fica mais quieto. As pessoas andam mais devagar, com medo de cair, tentando tatear com os pés onde é mais seguro pisar. Ninguém teve ainda tempo de limpar as calçadas. E se a neve ainda estiver caindo, aí sim a sensação de paz é completa. Isso porque, diferentemente da chuva, a neve é lenta, e cada floquinho vai descendo de vagar, dançando de um lado para outro, até pousar lentamente sobre o floquinho que caiu segundos atrás. Observando da janela, até o nosso ritmo parece que fica mais lento.

Não bastasse tudo isso, tem ainda o floco de neve em si. O menor pedacinho visível da neve tem um formato perfeitamente geométrico, como uma mini toalha de crochê, branquinha, daquelas que a minha avó Maria faz. Tamanha perfeição se desfaz em segundos, ao cair na nossa mão, e vira uma gota de água como outra qualquer.

É uma pena, mas esse dia uma hora acaba, e logo em seguida vêm os dias de caos (ou “Katrastrophe”, como falam aqui). A calma da neve branquinha dá lugar à bagunça geral que descrevi lá no começo. Ainda assim, penso que vale à pena. Afinal, que graça teria passar tanto frio se não pudéssemos ver a paisagem mudar, as crianças felizes da vida com o brinquedo novo que caiu do céu, e, acima de tudo, ter o privilégio de experimentar a sensação do dia em que neva?

Penso que é como aquelas decisões que a gente toma, cientes das consequências, nem sempre fáceis de administrar. Sabemos que virão - e de fato vêm - as dificuldades, o desconforto, e a necessidade de se equilibrar, aqui e ali, para não escorregar. Mas ainda assim topamos pagar para ver, viver o que existe para ser vivido, e aproveitar, cada um desses dias “em que neva”, seja no inverno, seja no verão.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Igual mas diferente

Acho que já houve um tempo em que era possível dizer de onde uma pessoa vem, simplesmente com base na aparência, no jeito de vestir, ou no comportamento. Hoje em dia, não é tão fácil.

Tenho percebido isso no trem e no ônibus, aqui em Berlin, onde tem gente do mundo inteiro. Enquanto não chega a minha estação, e quando não estou folhando o meu Michaelis tentando traduzir as propagandas dentro do vagão, fico observando as pessoas ao meu redor. Com base no visual tento adivinhar quem é de onde. Só dá certo se, em algum momento durante a viagem, a pessoa começar a conversar com alguém ao lado, ou, atender o celular, por exemplo. Aí, dependendo do idioma, vejo se acertei ou não. Ah, e se a pessoa puxar da bolsa um livro ou um jornal para ler, também funciona, contanto que eu esteja perto o suficiente para dar aquela esticadinha, de rabo de olho, para ver o idioma da leitura. Não é xeretar a vida alheia, longe disso. É um experimento cultural, ou intercultural, melhor dizendo.

Tem gente, às vezes, que eu juro de pé junto que é brasileira. Tem aquele olhar esperto, prestando atenção em tudo o que acontece ao redor, como quem já andou muito na praça da Sé, sabe? Sempre achei que só brasileiro tinha esse olhar. Outro dia tinha uma moça negra, alta, bonita, com esse olhar. Fiz minha aposta. Daqui a pouco ela esbarra alguém e manda um “entschuldigung”, sem sotaque algum. Errei de novo. O estereótipo do Alemão, loiro, dos olhos azuis, não ajuda mais. A moça loira e alta ao meu lado no ônibus, com toda a pinta de alemã, desandou a falar português de Portugal ao celular, sem mais nem menos. Parecia piada. Já a japonesa, de um metro e meio de altura, sentada lá perto do motorista, deu uma bronca nos dois filhos, em alto e bom alemão. Bronca em alemão é mais bronca. Morri de medo.

Acho bacana ver como, no mundo de hoje, é possível que tantas culturas convivam em um mesmo espaço. Por um lado, é interessante ver como pessoas de diferentes origens podem se passar uma pelas outras, mostrando que somos realmente todos iguais, feitos do mesmo material, capazes de aprender as mesmas coisas, a depender apenas do que nos ensinam.

E justo aqui, onde um dia um maluco decidiu que quem não era ariano não merecia viver, é gostoso ver esta mistura de cores e línguas. Só espero que cada uma das culturas resista sempre à tendência de nos homogeneizarmos demais. Neste nosso tempo em que falar inglês geralmente basta, em que todo mundo assiste os mesmos seriados de TV, e quer roupas da mesma marca, torço pela manutenção de algumas diferenças, aquelas que continuam fazendo do mundo um lugar tão interessante.

No que tange às alemãs, devo dizer, uma diferença está definitivamente preservada. Na experiência acumulada até agora, na adivinhação de quem é de onde, uma técnica não falha nunca. A despeito das lojas chiquérrimas da Friedrichstraße e da Kudam, e do bom gosto dos alemães para roupas, utensílios e decoração, uma coisa é certa: loira ou morena, alta ou baixa, olhos claros ou castanhos: se o sapato for feio e parecer masculino, a moça é alemã. É batata! Aliás, uma hora dessas precisamos falar sobre as batatas...
                    (Era uma moça, juro!)

domingo, 17 de outubro de 2010

Folhas do outono

Por alguns anos, guardei no meio das páginas de um livro antigo uma folha de árvore. Aquela de 3 pontas, típica de lugares frios, que tem na bandeira do Canadá. Sempre gostei dessa árvore. Como é tão difícil encontrá-la no Brasil, acho que acabei guardando uma, quando encontrei em alguma viagem. Nem me lembrava mais. Na hora da nossa mudança aqui para Berlin, em meio à infindável seção do “isso vai, isso fica", me deparei com o livro. Parei por uns instantes, no meio daquela confusão toda (com 4 empacotadores da empresa de mudança dentro do nosso apartamento, com seus rolos de fita crepe, embalando tudo o que viam pela frente). Sorri ao ver a folha ali escondida, por tanto tempo. Joguei a folha fora, e doei o livro. Assim como nos desfizemos de mais um montão de coisas. Ao parar para ver o que de fato queríamos trazer conosco, notamos quanta coisa vínhamos guardando sem necessidade, talvez só porque tinha espaço de sobra no armário. Sentimos vontade de vir para cá mais leves. E foi o que fizemos.

Engraçado como a gente logo passa a preencher o espaço das coisas antigas, por outras novas. E por coisas não quero dizer apenas copos, livros e toalhas de banho. Às vezes é bom liberar espaço, tanto no armário, quanto na cabeça.

Ainda não faz um mês que estamos aqui na Alemanha, e já nos pegamos completamente envolvidos com assuntos locais, ocupando nosso tempo com coisas que há algumas semanas nem sabíamos que existiam. O bilhete anual de trem, a carta da companhia telefônica que chegou em alemão, o aquecedor à gás que a gente não sabe direito como funciona, o código para abrir o portão do prédio. O que é, afinal, que fala aquela gravação que toca cada vez que o metrô fecha a porta? A gente não acha no dicionário de jeito nenhum!

Não deixamos para trás apenas coisas e pensamentos, mas também pessoas muito queridas... Essas, a gente não substitui nunca, e elas fazem uma falta danada. Mas até neste ponto, parece que ao sair do conforto da companhia dos amigos e da família, ficamos visivelmente vulneráveis, e acabamos atraindo pessoas boas, dispostas a oferecer ajuda, que talvez, em outras circunstâncias, sequer conheceríamos.

Nesta sexta feira, voltando do trabalho, me dei conta que tinha esquecido a chave de casa. Como se pode ver, infelizmente, a mudança para o hemisfério norte não abrandou as implacáveis rajadas da minha cabeça de vento. Cheguei mais cedo, ainda não temos celular, fiquei trancada para fora. Esperei na calçada uns 30 minutos, na lojinha do grego aqui em baixo até o horário dela fechar, e mais uns 30 minutos sentada no degrau da entrada aqui do prédio, no escuro, em um clima “fresquinho” de 6 graus. Foi quando um casal de vizinhos me viu, e, depois de entender o que se passava, me convidou para esperar no apartamento deles, já que estavam aguardando umas visitas, e iam abrir um vinho de qualquer jeito... Um teto e um vinhozinho, àquela altura? Nunca reagi tão rápido, quanto mais em outro idioma.

Esses e outros fatos do dia-a-dia, aqui, têm me levado a pensar. Hoje, ao caminhar pela calçada aqui em frente de casa, completamente coberta de folhas de 3 pontas que estão caindo aos milhares das árvores amareladas pelo outono, me lembrei da folha idêntica que eu guardei por tanto tempo, dentro do meu livro. Parece que às vezes precisamos abrir mão de algumas coisas, para podermos experimentar outras que a vida tem para oferecer. Não raro, lá vem ela com infinitamente mais do que sequer podemos pedir ou imaginar.



quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Allein in Berlin

Sozinha em Berlin há cinco dias, comecei a ouvir os batimentos do meu próprio coração, na hora de dormir. Que coisa mais esquisita, nunca os tinha ouvido antes, assim, sem estetoscópio nem nada. Talvez seja por que o quarto do hotel é super silencioso, a vizinhança tranqüila. Pode ser. Mas tenho outra teoria. Quando a gente não entende o que está sendo dito ao nosso redor, por muito tempo, passamos a prestar mais atenção aos nossos próprios pensamentos, sentimentos, e talvez até ao nosso coração. Ficamos mais introspectivos que o usual.

Ontem, por exemplo, na estação de trem, me solidarizei com uma pomba. Alemã, imagino, mas igualzinha às pombas da praça da Sé. Ela deve ter entrado por uma das janelas e foi indo adiante, adiante, até que entrou em uma área toda cercada de vidro e não sabia mais o caminho da saída. Como eu, ela estava ali, andando de um lado para o outro, no meio daquele monte de gente, sem saber direito para onde ir, e sem muita coragem para perguntar para alguém. Tenho certeza de que, como eu, que acabei achando a plataforma do meu trem, ela também deve ter achado a saída, depois de algumas tentativas. O fato é que normalmente eu sequer teria reparado na pomba. Se estivesse entendendo todas as placas e a conversa das pessoas ao lado, acho que teria passado direto por ela.
Não falar a língua local traz algumas vantagens, ao menos para mim que geralmente sou avessa a experimentar comidas exóticas, por exemplo. Gostei da foto de um prato de macarrão oriental na porta do restaurante, entrei e pedi pelo número do cardápio. Não tinha erro, afinal, yakissoba é tudo igual, e os números eu aprendi já na primeira aula. Alles gut! Mas nem sempre as coisas são tão simples assim... Foi pedir o prato e logo veio a pergunta, na lata: com o molho X ou Y? Se você já passou por uma dessas situações constrangedoras, sabe muito bem que nesta hora, o que a gente mais quer é abreviar aquele momento de tensão, com gente esperando na fila, e o atendente com cara de poucos amigos. Além do que, de que adiantaria perguntar a composição dos molhos? A explicação viria no mesmo bom Alemão do viatnamita do balcão, com aquele super bom humor de final de expediente.


Escolhi o molho aleatoriamente, como muitas outras escolhas que tenho tido que fazer por aqui. Era dia de molho “supresa”, pronto. Devo confessar que dessa vez deu errado, o molho era horrível. Onde já se viu colocar abacaxi no macarrão? Paciência. Paguei em Euros, estou com fome, desperdício é pecado. Comi tudo. Quem sabe da próxima vez?

domingo, 1 de agosto de 2010

Planos, tropeços e malas

Uma vez ouvi alguém dizer uma coisa que me marcou muito: “Quer fazer Deus rir, mas rir de verdade? Conte a ele os seus planos”. É fato. Podemos até traçá-los e nos esforçarmos para que eles aconteçam, mas a última palavra nunca é nossa. O problema é que temos a mania de nos apegar aos nossos planos de tal forma que, a certa altura, acreditamos sinceramente que eles se cumprirão.

Precisamente há um ano, por exemplo, imaginava que 2010 seria um ano de transformações importantes na minha vida. Em parte, parece que eu estava certa. Mas as transformações que eu ingenuamente imaginava eram completamente diferentes daquelas que efetivamente estão por vir.

Enquanto a fila da adoção seguia o seu passo lento (por lento entenda-se mais de 1 ano sem notícias) resolvemos, sem maiores pretensões, dar uma chance à ciência, embora sempre soubemos das baixíssimas chances de sucesso de uma fertilização no nosso caso. Injeções auto-aplicadas todos os dias, a espera do dia ideal para a punção, inúmeros ultrassons, uma montanha russa hormonal, sem falar na tensão de uma sala de espera cheia de mulheres igualmente descompensadas pelo stress do processo, e seus pobres maridos aflitos. Basta para acabar com a serenidade de qualquer um.

A nossa esperança de sucesso, que no começo era tão pequena quanto o conteúdo inerte daqueles tubinhos congelados, em poucos dias se tornou uma explosão de euforia, ao vermos a milagrosa formação da vida, bem ali na nossa frente, através da lente de um microscópio, na forma de 4 embriões saudáveis. Sim, eles queriam existir. Estavam ali para provar que milagres acontecem. Nos sentíamos abençoados. Choramos juntos de alegria. E, pouco tempo depois, novamente de tristeza. Por duas vezes, a implantação não aconteceu, sem maiores explicações. Talvez eles não quisessem, na verdade, existir. Talvez quisessem, mas não conseguiram. Talvez, talvez, talvez. Talvez o plano não era bem esse.

Se Deus sussurra aos nossos ouvidos nos momentos de alegria, e grita alto nos momentos de dor, devo confessar que por algum tempo depois, mantive meus ouvidos bem tampados, de propósito. Devem ter sido os benditos hormônios. Logo passou. Logo voltei a querer ouvi-lo. Logo voltei a querer saber qual era o plano afinal.

Como sempre, os tropeços machucam, mas nos levam a prestar mais atenção no caminho. Voltamos à fila, à nossa espera, e nela conhecemos outras realidades, de pequenas grandes pessoas que também enfrentam longas esperas, como você já leu nos posts anteriores (assim espero!). E por falar em espera, quando menos esperávamos, a vida trocou o destino das passagens que segurávamos tão firmes em nossas mãos. Ao que tudo indica, ainda não será desta vez que aterrisaremos na vida de pais.

Em lugar de fraldas e berços, um ano depois do relatado, estamos às voltas com vistos e malas de viagem. A vida está nos enviando para trabalhar e estudar na Alemanha. Alemanha? Não é nem de longe o que eu tinha nos meus planos imediatos. Mas quem é que disse que eles contam? Vamos até lá. Vamos ver o que é que a vida quer nos mostrar...

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Nascida para o que, mesmo?

Um dia desses vi na televisão a Susan Boyle, aquela senhorinha esquisita que virou um hit depois de participar de em um concurso de cantores na Inglaterra. Não sei cantar, e nunca quis ser cantora, mas preciso confessar que fiquei com uma inveja danada da D. Susan, não pelo sucesso repentino, mas por causa de uma declaração que ela fez no programa da Oprah Winfrey (sim, eu assisto). A senhorinha disse, com uma certeza desconcertante, que sabe exatamente para o que veio ao mundo, e que não tem a menor dúvida que hoje faz precisamente o que nasceu para fazer.

Imagine ter a segurança, a todo tempo, que não há nada, neste mundo, que você poderia fazer melhor do que o que você já faz. Caramba! Estatisticamente, as chances são bem pequenas, afinal de contas, existe um mundo de possibilidades lá fora, um monte de coisas diferentes para se fazer, e, em geral, somos expostos a um ínfimo número delas. Simplesmente escolhemos uma, e torcemos para que dê certo.

Por exemplo: se o indivíduo cisma que quer ser médico, vai passar pelo menos uns dez anos se preparando para isto. E se, chegando lá, digamos, uns dois anos depois da residência, algum fato da vida vier a lhe revelar que, na verdade, ele nasceu para ser astronauta? Já era. Dificilmente haverá tempo para mudar a rota e investir naquilo que ele efetivamente deveria estar fazendo. Afinal de contas, astronautas, atletas, físicos e grandes pintores, assim como um monte de outros profissionais, a exemplo dos médicos, precisam começar cedo.

Talvez seja só eu, e você não esteja vendo sentido algum no que estou tentando dizer. De fato, normalmente não percebo nas pessoas essa mesma ansiedade, e provavelmente elas estão certas. Cada um faz aquilo que a vida lhe oferece, e tenta fazer da melhor forma possível. Acertar na mosca (a mosca sendo a atividade que melhor aproveita os seus talentos inatos) é privilégio para poucos, ainda mais se for de primeira. Na verdade, sejamos realistas: a maioria das pessoas sequer pode se dar ao luxo de escolher o que fazer para ganhar a vida.

Eu tive a chance de escolher minha profissão, não só uma, mas duas vezes. Sou muito grata por isso, especialmente por que na segunda escolha encontrei uma forma muitíssimo mais eficiente para usar o que acredito serem os meus talentos. Ainda assim, confesso que às vezes me pego pensando se um dia poderei afirmar, com o mesmo grau de firmeza e segurança, o que disse a D. Susan, que sabe que nasceu para cantar. Vai ver que no meu caso... eu nasci foi para conjecturar.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O danoninho nosso de cada dia

Já reparou como gastamos boa parte do nosso tempo pensando em coisas que sequer existem? O amanhã é um bom exemplo. Olhe aí para o seu relógio. Até a meia noite de hoje, o amanhã simplesmente não existe. Não se trata de discutir se ele existirá ou não, com aquela velha conversa de que “basta atravessar a rua...”. Nada disso. A questão se limita aos fatos. Neste momento, ele não existe. Ponto final.

Então, por que será que nos dedicamos tanto a imaginar como ele será? E pior, quando o amanhã finalmente chega, lá estamos nós pensando no dia seguinte, e seguinte, numa interminável especulação sobre o que vem por aí. Parece um mal bastante comum, tanto é que garante o sustento de um bando de profissionais, de economistas a meteorologistas, para não falar nos praticantes de modalidades menos respeitadas de adivinhação. Mas parece que nem sempre fomos assim, ao menos, não quando éramos crianças.

Neste último feriado, o Léo – aquele mesmo, o do leão – voltou à nossa casa. Do dia em que ele chegou, até o dia em que o levamos embora, eu só conseguia pensar em como será a vidinha dele, dependendo do que o juiz vai decidir (quando V. Excelência decidir decidir, é claro).

Será que o Léo um dia vai se formar na faculdade, ou vai largar a escola cedo? Será que ele vai se lembrar que é feio pegar sem pedir emprestado, ou vai se render aos conselhos das más-companhias? Será que ele vai esquecer a sensação de abandono que experimenta desde tão pequenininho, ou vai transformá-la em revolta, em algum ponto do caminho?

Já ele... quanta preocupação! Se deliciou com a água gelada no rasinho da praia, comeu tantos danoninhos quanto pôde, assistiu mais uma vez o seu filme preferido na televisão, dormiu no nosso colo no sofá, fez birra para ir para a cama. Viveu aqueles 4 dias intensamente, sem pensar no domingo que estava chegando. Sem pensar nos meses e anos incertos que estão por vir. Sábia decisão: afinal de contas, o que pode ele em relação ao seu futuro, do alto do seu 1 metro de estatura?


Tentei ensinar o Léo a amarrar o cadarço do próprio tênis. Ele me olhou fixamente, com a testa bem franzida, e as palmas das duas mãozinhas viradas para cima, em sinal de completa indignação:

“Mas, tia, eu só tenho 4 anos!”  

Boa Léo! Às vezes falta a nós, adultos, reconhecermos a nossa pequeneza e impotência diante dos fatos da vida. Quer saber? Façamos a nossa parte hoje, e que venha o amanhã, como tiver de ser. Eu vou é imitar o menino, e comer meu danoninho sossegada, um dia de cada vez.

sábado, 29 de maio de 2010

Atletas da vida

Há algum tempo decidi pular da cama mais cedo e ir nadar às seis da manhã, antes do trabalho. O congestionamento infernal depois das sete e meia tem sido um grande estímulo para abrir mão de uma hora de sono, em troca de um começo de dia sem stress. Atualmente, a CET só ajuda quem cedo madruga, e olha lá. Mas não tem sido esse o único benefício do novo hábito.

Logo nos primeiros dias me surpreendi com a freqüência da academia nesse horário. Justamente quem não tem mais compromissos, e tem o dia todo para ir onde quiser, faz questão de aparecer por lá logo no primeiro horário, como eu.

Aos poucos, elas vão chegando, uma a uma, carregando suas malinhas, maiôs e toucas, prontas para a hidroginástica, que, tenho certeza, não passa de um pretexto para aquele encontro animado no vestiário, todas as manhãs.


É a turma da terceira idade. Um bando barulhento de senhoras, no auge dos seus setenta e poucos anos, com muito mais assunto do que qualquer turma de adolescentes no vestiário da escola. Cabelos de todos os tons, do vermelho vivo, daquelas mais extrovertidas, ao branquinho elegante daquelas que exibem com orgulho a prova da sua vivência.

Ali, não trocam apenas de roupa. Trocam dicas sobre os passeios da semana, relatos sobre filhos, netos e noras, convites, receitas, vivências. Riem de si mesmas , queixam do joelho que dói, mas logo ajeitam a alça dos maiôs uma das outras e vão para a piscina, ainda tagarelando: “você paga para mim o passeio para Poços, eu te dou na semana que vem?”

É um burburinho gostoso de ouvir... Ajuda a lembrar que a velocidade da vida um dia diminui, e que a pressa para secar o cabelo correndo para chegar ao trabalho um vai dar lugar a uma pressa diferente. Afinal de contas, elas ainda correm. Correm atrás do tempo que passaram dentro de casa cuidando de filhos e dos maridos, ou trabalhando atrás de um caixa de banco, como algumas já comentaram. Correm para aproveitar o dia, como a D. Francina ajeitando com destreza a prótese de mama sob o maiô, enquanto me conta como venceu a doença, há mais de 20 anos. Já sabem o que importa na vida. Já não perdem tempo com o que não importa.


Mais de uma vez, ali no vestiário, ouvi de algumas dessas atletas: “Ah, minha filha, foi o tempo em que eu tinha esse corpinho...”. Minha resposta é sempre a mesma. “E está para vir o tempo em que eu vou saber tudo o que a senhora já sabe, é ou não é?”. Elas riem, mas sempre concordam.

sábado, 24 de abril de 2010

Minha dupla

É no dia-a-dia que conhecemos quem vive com a gente. Um pouquinho a cada dia. É por isso que eu acho que o tal amor à primeira vista não existe. Impossível. Seria uma inversão da ordem natural das coisas: amar, para depois conhecer? Não acho que funciona assim. Amamos ou deixamos de amar, na medida em que conhecemos.

É no dia-a-dia que vamos percebendo as qualidades e os defeitos, as reações e as omissões, aquilo que nos causa admiração e aquilo que preferiríamos não ver. De posse dessas informações, vamos lentamente consolidando - ou desfazendo - o desejo de ficar juntos, de viver em dupla.

Mas é naqueles dias menos comuns, aqueles das situações inusitadas, difíceis ou mais críticas, que este conhecimento vem em doses maiores, e pode nos surpreender, mesmo após alguns anos de convívio. Assim tenho ouvido falar, e experimentado.

Recentemente, no meio das nossas férias, inventei de interromper o passeio por 1 dia para comparecer a um compromisso de trabalho em outro país, um lugar que não conheço e cuja língua eu não falo. Talvez eu pudesse até ter ido sozinha, e voltado com uma sensação de auto-suficiência que só as mulheres modernas podem experimentar.

Mas tenho certeza que essa sensação não seria melhor do que aquela que eu senti, tendo sido amparada pela minha dupla, durante a aventura. Começando por um absoluto desprendimento em relação ao fato de que o compromisso de trabalho era meu, e não dele, passando pela disposição em me acompanhar, e pela assunção de toda a responsabilidade para garantir que eu chegaria no lugar certo, na hora certa, e faria bonito na reunião. Da compra dos bilhetes de trem na tal língua, à limpeza da manga do meu casaco - que eu desastradamente sujei de molho minutos antes do compromisso -, passando pelo grande encorajamento para encarar aquele dia que, para mim, era um desafio. Acima de tudo, uma postura que me surpreendeu, a despeito dos vários anos de “conhecimento”.

Se é que ainda existe por aí alguma feminista de plantão, daquelas que dispensa com orgulho o cuidado masculino, que me perdoe. O feminismo nos fez enxergar com naturalidade que determinados papéis, antes só exercidos pelos homens, podem também ser exercidos por nós, mulheres, e vice-versa. Até aí, tudo bem. Mas é importante lembrar que alguns desses papéis estão tão gravados na nossa essência que, quando nos rendemos a eles, e admitimos nossas fragilidades, nada de terrível acontece. Pelo contrário, nos sentimos bem, nos sentimos mulheres, e ainda criamos a oportunidade para conhecer um pouco mais quem está ao nosso lado. Foi justamente em uma dessas oportunidades que passei a admirar ainda mais a minha dupla.

sábado, 6 de março de 2010

Terceirização em casa

Se a expressão “cargo de confiança” fosse associada a uma imagem, ela teria de ser, na minha opinião, a de uma mocinha tímida, de 18 anos, vestida com um uniforme branco. Cada vez mais, meninas com este perfil são vistas nos play-grounds dos condomínios de classe média, shoppings e festinhas infantis, correndo atrás de seus pequenos patrões. Embora tão jovens e inexperientes, são merecedoras da confiança de casais ocupados demais durante a semana, e cansados demais no final de semana, para cuidar da sua prole.

Para quem cresceu com a mãe em casa, em tempo integral, é um bocado difícil entender como é possível delegar poderes para cuidar de um bem tão precioso. O fato é que, abrir mão dessa ajuda significaria se render à inexorável verdade de que a vida com filhos simplesmente não pode ser a mesma. No entanto, vivemos em um tempo em que da mulher se exige que continue fazendo tudo o que fazia antes de se tornar mãe, do trabalho à ginástica. Como o dia continua tendo as mesmas parcas 24 horas, alguma das tarefas têm que ser sacrificadas, não há outro jeito. E é aí que entram as moças do uniforme branco.

Não se trata aqui de uma crítica ao fato em si, mesmo por que, não sou capaz de pensar em uma solução melhor. O que me intriga é como alguns parâmetros são relativizados, quando nos vemos sem opção. Embora hoje em dia ninguém contrate sequer um estagiário que não fale inglês, quando se trata da pessoa que passará 8 horas cuidando do seu filho em idade pré-escolar, uma mocinha recém-chegada do interior do nordeste, com pouca ou nenhuma desenvoltura ou habilidade de comunicação, é um verdadeiro achado.


Se a prática não pode ser criticada, muito menos podem as tais meninas. Geralmente privadas de instrução formal, tão jovens já se amarram às longas jornadas do cargo, por si só incompatíveis com o desejo de voltar para a escola. Embora estejam expostas a ambientes e pessoas com nível de educação muito superior ao seu, e que, em tese, poderiam contribuir para o seu desenvolvimento, raramente alguém, que não as próprias crianças, se dirige a elas, que passam despercebidas em seus uniformes brancos.


Alguns pais não conseguem abrir mão deste conforto nem mesmo nos momentos de lazer, e carregam essas mães terceirizadas a tiracolo, nos finais de semana. Quem nunca se sentiu constrangido ao ver um casal almoçando tranquilamente em um restaurante sofisticado, enquanto a mocinha do uniforme branco, também à mesa e sem comer, se equilibra na pontinha da cadeira tentando fazer o menino comer umas batatinhas?


O preço pago por esta comodidade toda pode ser um pouco mais alto do que o salário que essas moças recebem no final do mês. Ouvi outro dia a história de uma criança que, ao cair no chão, numa festinha infantil, abriu a boca a chorar e correu desconsolada em busca de colo. A mãe, que logo se abaixou, de braços abertos em sinal de acolhimento, só teve tempo de ver o menino passar direto por ela, e se jogar aos prantos nos braços da moça do uniforme. Está aí uma tercerização cujo custo pode ser alto demais.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Céu de brigadeiro

Dizem que Deus tem um plano para a vida de cada um de nós. Acredito nisso. Mais quando vejo algumas coisas inesperadas acontecerem. Menos quando olho da janela do avião e vejo como é pequeninha essa nossa vida, da perspectiva de quem está no céu.

Nesta última semana, encontrei, por alguns caminhos que andei percorrendo, pessoas que parecem ter sido colocadas bem ali, na minha frente, com algum propósito.

Dois homens, um brasileiro, outro estrangeiro, e duas crianças de 3 anos de idade, um menino e uma menina, falando inglês, na fila do embarque da TAM. Ausente qualquer semelhança física com os adultos, presente um laço invisível entre os 4 membros daquilo que em poucos segundos entendi ser uma família. Um tanto alternativa, é verdade. Mas uma família. Dentre as quase 150 poltronas da aeronave, o lugar deles era, justamente, ao lado do nosso. É claro. E se a vida passa bem na nossa frente com a bandeja de docinhos, nos cabe, no mínimo, esticar a mão e apanhar ao menos um brigadeiro. Puxei conversa e em poucos minutos lá estávamos nós, um grupo de desconhecidos, com algo muito profundo em comum. Fomos presenteados comum um belo relato sobre a experiência da adoção, e sobre como, apesar das muitas dificuldades (neste caso agravadas pela peculiar condição dos adotantes) as coisas acontecem quando têm que acontecer. Um belo dia, até o telefone deles tocou. Era hora de buscar os gêmeos, que acabavam de nascer.

Hoje, em outro aeroporto, e outro contexto, lá estava a bandeja de brigadeiro novamente. Reunião de trabalho encerrada antes do esperado, vôos já marcados, tempo para conversar sobre outros assuntos que não os contratos e processos de todo dia. Um diretor com quem trabalho há bastante tempo, por quem tenho profunda admiração profissional e pessoal, compartilhou comigo, inesperadamente, o fato dos seus filhos (sobre os quais já ouvi tantos relatos, apaixonados) serem adotados. Mais uma mostra gratuita e inesperada de valiosas experiências, gasolina para o tanque do entusiasmo, que vez ou outra fica na reserva.

De fato nossa vida, assim como nossas pequenas angústias, ansiedades e problemas, são minúsculos pontinhos, se vistos lá de cima, da janelinha do avião. Isso quando o céu não está nublado como hoje, em que praticamente não se vê nada aqui em baixo. Mas das duas uma: ou Deus está mais perto do que pensamos, aqui em baixo mesmo, ou tem um sistema de visualização ultra moderno, que mesmo lá do alto enxerga nosso coração em detalhe, e, para o qual o céu... é sempre de brigadeiro.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Dona Maria

Por muitas vezes nos perguntamos a que veio ao mundo a D. Maria. Desde mocinha, segundo ela mesma conta, pouco uso fez das próprias pernas. Não sei bem como ela e o Sr. João se conheceram, e o que o levou a adotá-la como esposa (sim, este é o termo mais apropriado). O fato é que ele cuidou dela como um pai. Durante 50 anos de convívio, lhe levou o café na cama, fez o almoço e a feira. Até que, há alguns anos, decidiu vagar o posto e foi embora deste mundo para um merecido descanso, deixando a D. Maria por aqui, mais dependente do que a encontrou.

As 2 meninas às quais a D. Maria deu a luz, cuidam dela como se dela fossem mães. Não só agora, mas desde crianças. Nada mais justo do que 2 pequenas mães para alguém que perdeu a sua própria, aos 9 anos, e ainda ficou encarregada de comprar as flores para o enterro. Um trauma cujas conseqüências permearam toda a sua vida, assim como a das pessoas que com ela conviveram.

D. Maria não deixava a filha sair para ir à escola a menos que a menina – com 7 anos de idade – arrumasse e trouxesse alguém para fazer companhia à mãe. Caso contrário, batia a cabeça na parede. Jurava que ia se matar. Dizia que era muito doente, e que não duraria muito. A menina ouvia apavorada, largava os cadernos no chão e voltava para dentro de casa, com medo de ser a causadora de uma tragédia. Tanto ela obedeceu, que D. Maria sobreviveu, e hoje, aos 85 anos, por vezes ainda usa o mesmo argumento.

Curioso como D. Maria jamais perdeu o juízo. Por maiores que fossem os surtos de pânico, sua lucidez em momentos de calma sempre foi invejável. Ou você conhece muitas senhoras desta idade que sabem de cor a escalação do Corinthians?

As filhas não têm um pingo de ressentimento da D. Maria. Ao contrário, cuidam dela com um zelo imenso, que poderia até ser classificado como excessivo, não estivéssemos falando desta figura peculiar. Tenho a impressão de que, assim como a natureza molda a aparência dos bebês, para que despertem nosso instinto de cuidado e proteção, ela parece ter feito com a D. Maria. A despeito de todo o trabalho que ela já deu, e das cenas que ela já aprontou, o seu rostinho tão marcado pelo tempo segue apagando as memórias ruins e aumentando o desejo de lhe proporcionar alegria e bem estar. Desejo este que mobiliza não só as filhas, mas também genros, netos e companhia.

Conheci a D. Maria já no seu (tímido) papel de avó, e a maior parte do que relatei acima me foi contado, e não vivido. O que sei é que hoje ela voltou para casa, de uma curta estada no hospital, e que, pela primeira vez, sua lucidez parece estar dando espaço para alguns episódios de ausência. Com base no histórico, tenho certeza de que é Deus, mais uma vez, trabalhando para poupá-la dos sofrimentos dessa fase da vida.
Tem muita sorte mesmo, essa D. Maria. Pra falar a verdade, nunca foi DONA de nada, nem da própria vida, mas, de um modo ou de outro, sempre teve quem cuidasse desse precioso bem para ela... e com olho de dono!

domingo, 31 de janeiro de 2010

Questão de saúde pública

Racionalmente falando, é inconcebível a idéia de que alguém possa, por livre e espontânea vontade, optar por renunciar a um direito que lhe cabe. Quem, em sã consciência, um dia acorda e simplesmente decide que, daquele dia em diante, não faz mais questão de dormir tranquilamente as suas noites inteiras, aceita modificar radicalmente a sua rotina e seus hábitos, e concorda, voluntariamente, em passar a colocar as necessidades de um terceiro acima das suas próprias, para o resto da vida?

Só um maluco tomaria em uma decisão deste tipo. O que tem me intrigado, nos últimos tempos, é que essa excentricidade tem se disseminado rapidamente entre pessoas da minha faixa etária, que, de uma hora para a outra, abrem mão do juízo e decidem que querem se tornar pais.

Ninguém que os tenha tem coragem de negar: os filhos são presentes, bênçãos, a alegria da casa. O que não falta são definições poéticas e apaixonadas. Nos relatos das mães, ainda que com olheiras exaustas, o verbo padecer só se conjuga no paraíso.

Mas tem que haver um mal entendido aí, não é possível. Como é que pode alguém invadir o seu espaço, vir morar na sua casa sem pagar aluguel, demandar mais atenção do que você se julgava capaz de dispensar e você ainda se dizer satisfeito com isso? O fulaninho não sabe nem falar obrigado, e é sempre o primeiro a comer, o que mais dorme, e o único que não precisa nem limpar o seu próprio bumbum. Sem mencionar o choro ardido, desafiando o instinto que temos de eliminar tudo o que nos causa irritação. Cessa a fase do choro e logo a trilha sonora migra para uma sucessão interminável de “eu queros”, “porquês?” e “meus”. Estou convencida de que a atitude da criança é a clara visão da origem do nosso egoísmo, que, ao longo da vida, vamos aprendendo a moderar (ou, a menos, disfarçar). Não fosse assim talvez nem estivéssemos mais aqui, afinal, todo filhote precisa crescer, precisa comer, precisa aprender, precisa experimentar, precisa, precisa, precisa.

Precisa mesmo é essa programação que colocaram no nosso chip. Suspende a nossa razão com precisão cirúrgica, na exata medida necessária para que, ainda que cientes de todos os ônus, não sejamos capazes de resistir ao bônus de uma risadinha banguela, ou da recompensa em si que é acompanhar de perto a formação de um novo ser.

São poucos os conseguem se manter imunes a esse poderoso traço de insanidade, que acomete a humanidade desde sempre.

Se descrevi acima o que tem me intrigado, lá vem o que tem me apavorado: acho que o meu próprio discernimento também já foi comprometido!  

domingo, 17 de janeiro de 2010

“Tupêsa"!

Outro dia me peguei pensando por que é que ela nos atrai tanto. Desde crianças, somos fascinados por ela. Uma colega de trabalho outro dia descrevia para outra como os seus filhos gêmeos de 5 anos todo santo dia se dirigem a ela quando chega em casa do trabalho:

- Mamãe, mamãe, tem “tupêsa” ?

Peguei a conversa pela metade, de passagem pelo corredor a caminho da impressora. Mas uma vez ouvido o tal vocábulo desconhecido, não agüentei e tive que dar uns passos para trás e perguntar de que diabos os gêmeos estavam falando, afinal?

Ela me respondeu de maneira teatral, usando a palavra exatamente como os filhos a pronunciavam, mas com gestos e expressões que não deixavam dúvida:
- Você não sabe o que é “Tupêsa”? “Tupêsa” é quando alguém faz uma coisa que a gente não espera, como dar um presente. Aí quando saca o presente a pessoa ergue os braços, faz aquela cara e grita: “Tupeeeesaa”!

Ah, sim, a delícia que é a surpresa... Realmente, a sensação é uma das melhores, talvez por isso é que os gêmeos querem experimentá-la todos os dias. A surpresa se diferencia do susto, pois é sempre uma coisa boa. Ninguém chama de surpresa a sensação de ver um vulto na janela, de ouvir o telefone tocar de madrugada ou perceber um pedestre a um metro de distância do carro, em um instante de desatenção. Não, estes são sustos, e se encaixam em uma categoria totalmente diferente de sensação, embora também decorram de fatos inesperados.

Já o inesperado da surpresa é agradável, nos deixa perplexos de uma forma gostosa, nos deixa curiosamente felizes por não ter percebido antes o que estava para acontecer.

Mas se tem uma coisa mais gostosa do que experimentar a surpresa, é a sensação de proporcioná-la a alguém. Mesmo porque, quem surpreende vivencia a surpresa por mais tempo, durante toda fase de preparação. Há duas semanas, vinha planejando uma festa surpresa para o aniversário dos meus pais. Os dois completam 60 anos em fevereiro, um logo após o outro, com um intervalo de 1 semana. Eles jamais fizeram uma festa de verdade e, além de terem passado um ano meio difícil, achei que a data em si pedia algo especial. Ainda mais depois de ouvir a minha mãe comentar que estava com uma sensação de “dèjá vu”: quando eles ainda namoravam, ela teve de esperar 1 semana, depois do seu próprio aniversário de 18 anos, para que meu pai também completasse a tão esperada idade e os dois pudessem, finalmente, assistir a um “filme proibido” (não perguntei qual era o filme, mas em se tratando de 1968, provavelmente era algo tão escandaloso quanto Dr. Jivago). Agora, em 2010, ela se deu conta que precisará esperar a mesma 1 semana, até que meu pai complete 60 anos e possam ambos pagar meia entrada no cinema. Se isso não merece uma comemoração, então não sei mais o que merece!

Bom, comecei logo a tratar dos detalhes sem eles saberem, surrupiando os telefones das agendas, convidando os amigos em segredo, e planejando tudo mais o que uma boa festa surpresa requer. Mas como toda surpresa envolve riscos, numa noite dessas estava eu formatando o convite da festa, quando fui surpreendida por uma ligação, em tom de completa animação:

_ Filha, eu e o seu pai tivemos uma idéia!

Gelei na hora. A idéia era justamente essa que você acaba de pensar. Os dois também resolveram que esse era um aniversário especial, e pedia uma bela festa. Os planos dos sabidinhos incluía os mesmos amigos, o mesmo salão e a mesma data. Minha “tupêsa” tinha acabado de ir por água abaixo.

É claro que eu poderia usar de requintes de crueldade e dissuadi-los da idéia, dizer que dar festa é uma trabalheira, que é mil vezes melhor gastar o dinheiro em uma viagem, ou, ainda, convencer todos os amigos a recusar o segundo convite, deixando-os na decepção até o grande dia. Mas logo concluí que até o valor da surpresa tem um limite. Por mais que ela nos atraia, não tive estômago para vê-los decepcionados por várias semanas, em prol de um friozinho no mesmo estômago, na hora certa.

Estamos agora planejando a festinha em conjunto, e eles estão curtindo cada minuto. O que o singelo episódio me ensinou é que a vida, como ela se mostra a cada dia, é que é a verdadeira “tupêsa”.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A fauna do trânsito paulistano

Não, não se apresse em julgar pelo título. Este não é desabafo mal-educado, nem uma crônica desaforada sobre os indelicados nomes de animais que nos vêm à cabeça quando topamos com maus motoristas no trânsito de São Paulo - o que, aliás, de fato acontece com freqüência por vezes acima do tolerável.


Não. A idéia aqui é menos protesto e mais poesia. Sim, se prestarmos atenção, podemos observar algumas sutilezas do mundo animal enquanto andamos por aí nesse trânsito maluco, ou, melhor dizendo, enquanto NÃO andamos por aí nesse trânsito maluco.


Outro dia, parada em um congestionamento em plena na faixa da esquerda da marginal Pinheiros, me dei conta da presença de uma garça, branquinha, alta, esbelta, cutucando com o bico comprido aquele lodo imundo que se acumula na margem do rio (se é que aquele caldo ainda pode ser chamado de rio). Parada ali no trânsito, tive tempo de pensar com os botões do meu painel. Como é que um animal assim lindo, selvagem e, ainda por cima, com asas, preferia ficar ali, pescando não sei o quê naquela imundice (aliás, prefiro nem pensar o que ela poderia estar pescando). Foi quando, num daqueles momentos de insanidade passageira que temos no carro no horário de pico (ou será que sou só eu?), comecei a falar sozinha em voz alta:


- Vai... xô, xô! Some daqui, sua boba! Você tem asas! Por que é que você não voa para longe e se muda para um rio limpinho, bonito? Qualquer coisa é melhor do que esse lugar horrível em que você está...


Foi quando a insanidade do horário de pico deu lugar a uma súbita onda de sensatez, e me dei conta de que eu, como a garça, também estava ali, parada no meio de um congestionamento há mais de uma hora, como de costume, respirando aquele aquele ar fedido, ao lado de um rio morto. E eu, por que será que eu não vôo desta cidade?


Noutro congestionamento, alguns dias depois, foi a vez de um inseto. A tarde abafada de verão não combinava com o mar de carros e ônibus à minha frente, e, muito menos, com o meu ar condicionado quebrado (há alguns meses, diga-se). O desconforto do abafamento rapidamente superou o meu medo de abrir os vidros, até mesmo naquele cenário do elo perdido que é o Largo do Socorro. Socorro! E como toda desgraça tem um toque final, em poucos minutos uma abelhinha despreocupada resolveu juntar-se a mim. Era só o que faltava, pensei, uma ferroada na testa no meio deste trânsito, com este calor infernal. Mas a simpática visitante só deu uma voltinha dentro do carro, e rapidamente saiu pela outra janela. Quase que pude ouvi-la falando:


- Olha, só. Você aí tão grande, de carro e tudo. Quer apostar que eu, com essas pequenas asinhas, chego bem antes que você naquele semáforo ali na frente?


E se quisesse tinha chegado mesmo. Alías o semáforo ficou verde, vermelho,verde de novo, e nada do trânsito andar. Droga de abelha. Sumiu rapidamente, provavelmente rindo de mim. Mas também, foi só passar um menino vendendo bala e eu tratei logo de pegar uma sabor mel. Pronto, estava vingada. A espertinha tinha trabalhado de graça para mim e nem sabia. Quem tinha levado a melhor agora, heim, heim?


Por fim, hoje vindo do trabalho, prestei atenção redobrada no exato cruzamento onde outro dia tomei uma multa por passar no sinal vermelho (juro que eu achei que o marronzinho não ia ter coragem de me multar. O farol fechava tão rápido naquela tarde e o trânsito era tanto... agente da lei sem coração!).


Bom, enfim, hoje fui cuidadosa ao extremo, parei logo no amarelo e olhei para o guarda, buscando aprovação. E justo hoje, para minha surpresa, o marronzinho de plantão estava pouco se lixando para nós, motoristas desatentos reformados. Ele estava de olho em um vira-lata super simpático, daqueles malhadinhos com uma orelha torta e a outra não, língua de fora, sentadinho bem no início da faixa de pedestres, como se aguardasse mesmo a sua vez de atravessar.


Bastou o sinal fechar e o marronzinho começou a acenar com as duas mãos, bater os pés no chão e dar uns assobios engraçados, tudo ao mesmo tempo, para fazer o cachorro se levantar e ir de uma vez para o outro lado, a salvo do trânsito selvagem. Parecia uma performance daqueles acrobatas de cruzamento, só que sem a mesma elasticidade, e sem pedido de gorjeta no final. E quanto mais se esforçava o marronzinho, mais o bichinho abanava o rabo e dava voltas em torno das suas pernas sem a menor vontade de terminar de atravessar a rua. Nos últimos segundos do farol fechado o cão finalmente cruzou a faixa, de livre e espontânea vontade, deixando o semblante do marronzinho aliviado. Mas pude ver, pelo espelho retrovisor, o vira-lata abanando o rabinho, lá do outro lado da rua, pronto para voltar e brincar mais um pouco com o moço bonzinho de roupa marrom. Foi uma cena curiosa. Fez até a minha raiva do marronzinho passar. Afinal, ele também parava de vez em quando para dar uma olhada nas sutilezas em volta deste nosso trânsito não-domesticado.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O Léo e o leão


O Léo é a criança de 4 anos que passou as festas conosco, após conseguir uma autorização do juiz da vara da infância e juventude. Ele mora em um abrigo. Fomos até lá um dia para tentar acelerar a nossa procura por um bebê para adotar. Encontramos uma grande pequena pessoa, para nos ensinar a esperar.

Na nossa casa, tudo o que ele queria era “atitir filme”. O mesmo filminho do Tarzã, repetidamente, à exaustão. Abrindo a boca de sono todas as noites ele teimou que ainda não era hora de dormir, não queria que o dia acabasse. A única coisa capaz de distrair sua atenção dos desenhos era a palavra mágica... “piscina”. Lá ia ele correndo buscar a “shunga” de lycra azul, no quarto. Quarto este que, desde o primeiro dia da sua estada lá em casa, ele passou a chamar de seu. E na água da piscininha do prédio, de meio metro de profundidade, ele vibrava e não parava de sorrir, como se estivesse no maior dos parques aquáticos.


Há 2 anos no abrigo, ele foi afastado da mãe por problemas que não convém aqui detalhar. Não é difícil entender a afinidade do menino com o homem da selva. Toda a história começa com uma gorila encontra um bebê sem mãe, e o cria como se fosse seu. Não precisamos de Freud para explicar.



A sacola que dei para ele guardar os brinquedos que ganhou do papai Noel não saía do seu ombro, que até pendia para o lado de tanto peso. Onde íamos passear ele queria levar os brinquedos (todos) a tiracolo. Era um sufoco eleger um e deixar os demais em casa, parece que tinha medo de voltar e eles não estarem mais lá. Agora que ele voltou para o abrigo entendemos melhor. Foi colocar os pés lá e os brinquedos literalmente se pulverizaram, nas mãos de outros meninos, que não ganharam brinquedo novo neste Natal.



Contando assim pode parecer triste, mas o Léo nos ensinou com alegria que vale à pena esperar. Enquanto estamos aflitos em pensar nele agora, lá no abrigo dividindo a atenção dos poucos tios e tias com tantas outras crianças, esquecemos que foi justamente lá em que ele aprendeu a esperar a sua vez e a ter uma certa sabedoriazinha, se é que se pode falar assim. Esperando a decisão que vai definir a sua vida (voltar para o convívio com a mãe, com sérios problemas, ou ser direcionado para adoção), ele aprendeu, desde tão cedo, coisas que muita gente passa uma vida sem entender: não podemos ter tudo o que queremos, dificilmente as coisas acontecem na hora que queremos e, principalmente, que cada momento que nos é proporcionado deve ser curtido ao extremo (ainda que isso signifique saltos frenéticos de alegria ao ver um colchão inflável se encher).


Levamos o Léo ao zoológico pela primeira vez. Chegando lá, de tanto calor que fazia o leão estava dormindo na sua toca, e a decepção era geral. No último segundo, o bicho resolveu sair de lá e se mostrar para a criançada. Foi um alvoroço. Não foi o Léo que teve sorte de ver o leão. Estou convencida de que o leão é que se deu conta de que ali havia um menino para quem valia à pena aparecer. Aliás, nós também acabamos saindo um pouco da nossa confortável “toca” neste Natal. Tudo por causa do Léo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Meninas-Placa

A cidade limpa e as meninas-placa

Não há um de nós que não as tenha visto. De tanto vê-las, quase não as enxergamos mais. Perucas coloridas sobre cabeças ao sol, placas gigantes pendendo de seus pescoços suados. Ficam ali, em pé, plantadas nas esquinas e cruzamentos dos bairros onde brotam empreendimentos imobiliários, sinalizando o progresso do setor. São as meninas-placa.
Pagas (mal, por óbvio) para passarem o dia respirando a fumaça dos nossos escapamentos, chacoalhando setas gigantes, fazendo as vezes de postes. Postes estes que, aliás, estão agora a salvo e devidamente protegidos pela lei cidade limpa. Não se trata de crítica à lei, mas à impressionante aptidão que temos nós, os brasileiros, de desviar princípios e rapidamente usar algo planejado para melhorar o que andava mal, tornando-o pior.
Com as restrições à publicidade em postes, muros e outdoors na cidade, é impressionante o aumento no emprego desta modalidade degradante de publicidade, de eficiência duvidosa, que explora deliberadamente a falta de oportunidade de trabalho digno. As horas passadas ali, na função de poste, são certamente as mais improdutivas que um ser humano pode viver. Não se aprende absolutamente nada. Não se adquire prática em nada. Não se capacita para nada. Experiência? “Tenho, trabalhei de placa”.
Agora, em lugar da poluição visual ponto, temos a poluição visual vírgula, acrescida de um traço de miséria humana. Fazer as vezes de objeto, sabendo que o seu tempo vale bem menos do que a multa cobrada de quem pendura o cartaz no poste, em lugar do seu pescoço. Marmitas frias comidas no chão da calçada suja, sob o sol do meio dia. Outro dia me incomodei, chamei uma delas pela janela do carro e lhe estendi a mão com um livro: “Olha, para ajudar a passar o tempo”. “Obrigada moça, não sei ler não”. A menina-placa não sabe ler o que sinaliza, e passa mais um dia sem saber, com o olhar distante e sem perspectiva. Olhar de poste.
É hora de dar uma olhada sob o tapete da cidade limpa.